quarta-feira, março 02, 2005

Valores

Foi ao fim de vários anos de o mirar nas páginas de revistas e jornais, que finalmente o tive. Custou na altura quatro contos e pouco, ou melhor, muito trabalho e muito desejo. Quase ficava grosseiro no meu pulso de recém entrado na Faculdade, mas muito mais do que the first watch worn on the moon, tinha esse precurso de vários anos com muitos olhares, esse ar de quase inacessibilidade, que se tinha tornado realidade. Era o prémio do sétimo ano, estatuto elevado na altura, acesso garantido a algo mais do que um lugar nos Correios. Foi prémio meu e também prazer de quem o deu.
Depois, numa manhã trágica de mergulhos em Sesimbra, rapidamente sufocou, ficou acastanhado, irrecuperável segundo o veredicto decisivo dos técnicos. Quem o tinha dado, percebeu a perda que era e repetiu a generosidade de outro tempo, porque sabia exactamente o que aqule objecto era.
Viveu a réplica alguns anos de alguns maus tratos, coisas da idade em que alguns valores são menos bem apreciados, aqueles tempos em que tudo é possível e nada acaba. Ficou paralítica e acabou a dormir anos seguidos numa gaveta de mesa de cabeceira, onde, de longe a longe, lá o via imóvel, riscado, correia partida. Sempre que o via, o significado de todos aqueles anos vinha ter comigo e quase lhe dizia, espera aí pá, que um destes dias vais voltar a andar a contar-me o tempo.
Chegou o dia. É um risco ter destas coisas que têm valores para além do valor que têm. Ou o valor das coisas será o significado das coisas, muitas vezes menos aparente do que se vê. Nestas alturas ficamos vulneráveis e tudo pode acontecer, mesmo aceitar um orçamento de reanimação perfeitamente absurdo que daria para comprar meia dúzia de coisas que nos mostrassem o tempo, sem necessidade de lhes darmos corda de 48 em 48 horas. Só que não têm a carga da história e há objectos que têm história, significam muito para além deles.
Vai renascer para continuar a mostrar-me muito mais do que as horas. Sobretudo, que as coisas são quando têm história e que pouco é o valor do que não tem agarrado uma história. Especialmente, se essa história for difícil, o valor aumenta.

1 comentário:

anátema disse...

Que texto fantástico!
Obrigad@.

um abraço