quinta-feira, outubro 29, 2009

Jornalismo básico

As circunstâncias da morte não estão esclarecidas e a história tem algumas fragilidades. Uma ideia mais aproximada do que terá acontecido talvez venha a ter-se depois da autópsia.
O que se lamenta desde já é mais esta expressão de jornalismo básico, a exibição da raiva para se venderem mais uns jornais e uns anúncios de televisão, de forma irresponsável, incitando a população a ir aos hospitais exigir análises, contaminar-se e ser contaminada. COM SINAIS DE GRIPE FICA-SE EM CASA E SEGUEM-SE AS INSTRUÇÕES DO SERVIÇO TELEFÓNICO QUE FOI CRIADO! O internamento hospitalar, nesta fase do processo, é para quem necessita de cuidados diferenciados e intensivos.
Estranho também a miséria moral da exibição de uns pais a quem acaba de morrer um filho. Não vi quase expressão de dor, esmagada que estava pela raiva e desejo de vingança. Vivo num mundo de seres diferentes.
Lamento também a asfixia informativa das autoridades de saúde. Há momentos em que a táctica de escapar por entre as gotas da chuva, esperando que passe, não resulta e é necessário dar um murro na mesa.

terça-feira, outubro 27, 2009

O dia é hoje

Enquanto ainda não tinha adormecido na acção de sensibilização à gripe A, pensava para com os meus botões, que a morte só assusta quem está à espera de amanhã para começar a viver. Tranquilo é viver hoje e sorrir virado para o passado fugindo de medos paralisantes. Quando olhamos à volta, percebemos que estamos cheios desta sabedoria, mas alguém necessita, quase de forma desesperada, que tenhamos medo e acreditemos na vida eterna, só que nos não dizem onde nem quando. Não, obrigado!

segunda-feira, outubro 26, 2009

Os sem-médico

Contam-me sempre histórias parecidas de abandono. Para uma receita têm de ir para a porta do Centro de Saúde às cinco da manhã, falam-me de médicos de recurso, um hoje, outro amanhã, na negação da continuidade de uma relação de confiança médico-doente. Outras vezes também me custa ver a falta de confiança nos seus médicos de família. Sempre lhes vou dizendo que os médicos de família são os mais importantes na promoção da sua saúde, mas quase sempre desconfiam, cheios que estão também desta cultura dominante hospitalocêntrica. Assim, aos poucos vou também sendo médico de família num hospital central.
Não é fácil inverter uma situação onde os recursos estão no sítio errado, quase dois terços nos hospitais e o resto na Medicina Geral e Familiar. Já me choca ver um Ministério centrado quase e só numa gripe (que não h)Á, sem atender aos grandes problemas da Saúde. Por isso, sempre que a oportunidade surge, os incito a usarem os livros de reclamações, a manifestarem-se se necessário, porque não ter médico de família é bem mais grave que não ter um pseudo-serviço de urgência ao fundo da rua. Pena é, que a Imprensa do regime a nada disto consiga dar eco. E vamos criando, mais hospitais uns atrás dos outros, cada vez mais privados com dinheiros públicos a pagarem as contas da sua gestão. Lixados, continuam os sem-médico. E todos nós.

domingo, outubro 25, 2009

Leituras


Parece ser agora, politicamente correcto, fazer a crítica de Saramago, não lhe permitindo ter da Sagrada Bíblia a leitura literal. Quer-se pôr simbolismo e poesia onde sempre se procurou a aceitação literal da dor, do sofrimento terreno para, literalmente, se obter a gratificação por cima das nuvens. Podem os Sagrados livros não dizerem nada do que dizem na escrita fria das palavras, mas alguém se esqueceu descodificar a sua leitura anos demais. E, realmente, dessa forma foi pelo menos usada como livro de maus costumes e de justificação das guerras, pelos seus leitores ou por aqueles que foram transmitindo a sua mensagem para facilitação do poder da classe dominante ao longo dos tempos. Deus pode não ser mau, mas alguém leu as suas obras e omissões de forma a que a injustiça pudesse vingar, impedindo, quantas vezes, a expressão da vontade da correcção do erro por parte dos homens. O Todo-Poderoso foi, com frequência, demasiado liberal abdicando da utilização do Poder, permitindo demasiada liberdade à iniciativa privada. Era bom que tivesse tido uma atitude mais reguladora, impondo a orientação certa do seu enorme conhecimento, mostrando a sua existência. Não o fazendo, tornou-se, literalmente, inexistente, simbólico, talvez. Por isso, Saramago tem razão, porque a Vida é a vida e não uma entidade simbólica, com uma multiplicidade de códigos, que a interpretam.

sexta-feira, outubro 23, 2009

A lição do sol


Já algumas vezes me levantei de madrugada para fazer a tolice de ir ver o nascer do sol. Muitas mais, me pus sentado à beira-mar a vê-lo esconder-se no fim da tarde. Há um encanto diferente nos dois momentos. A frescura da manhã e a passagem do azul escuro com estrelas ao azul claro aliada ao sono com que se presencia o evento, fazem do nascer do sol, seja no Uluru seja no Saara, um momento belo, mas associado a algum desconforto. É preciso algum cansaço no corpo para se aproveitar todo o encanto destas coisas. O nascer do sol é também mais brusco, dura menos e logo se segue a banalidade da subida e o desconfortável aumento da temperatura. Nalgum instante, a pujança do sol, faz-nos procurar a sombra, tentarmos que se esconda. E assim se passa a maior parte do dia, até ao fim da tarde, quando o horizonte se vai alaranjando naquilo que, dizia a minha avó, seria prenúncio de dia solarengo amanhã. Aqui o tempo é mais gostoso e demorado, na mudança progressiva das tonalidades, no avermelhar das nuvens esfarrapadas. Apetece a música, a companhia e, tantas vezes, pão, queijo e um copo de vinho, ajudam ao inebriar dos sentidos. Aos poucos tudo acaba.
A vida é também um dia de sol, mas ao que me parece, sem nascimento no dia seguinte. Por isso, é fundamental que o apogeu, necessariamente agitado, seja rápido, de forma a que o longo caminho final tenha toda a magia colorida do entardecer.

quarta-feira, outubro 21, 2009

Poderes

Raio de sorte esta que nos faz sentir o poder como dever e não como privilégio, porque se é da natureza do trabalho e não da natureza da honraria. Resta a surpresa de ver os quem me dera nos olhares que nos contemplam. Nessa altura também temos o quem nos dera ser, ainda que só por alguns momentos, dessa forma. Assim, simples, virado somente para o lúdico da coisa e não ter sempre às costas o peso de fazer ou a necessidade de dar utilidade ao poder. Complicado, isto de ter sempre uma missão. Que os resultados nos façam rir aqui e além como compensação do sacrifício do poder.

terça-feira, outubro 20, 2009

O deputado aiatolá

O disparate é livre. E este pindérico eurodeputado não se inibiu na procura dos seus 5 minutos de notoriedade. A diferença de estatuto é total, do crítico nada ficará na memória do tempo, nem mesmo, talvez, a crítica; o criticado será eterno apesar da crítica. A diferença é que um é português e tem a dimensão do mundo. O outro mais um portuguesito apoiante da selecção nacional, de bandeirita à janela.
Serve talvez o episódio para revelar a verdadeira asfixia, a anti-democrática. A bem da Verdade (essa palavra mentirosa em certas bocas) reconheça-se que são reincidentes, os canalhas. Todos nos lembramos do episódio da rejeição do Evangelho, menos serão os que se lembram do nome do autor, que a fama do absurdo é coisa breve. Mas provinha da mesma Inquisição.
Este país é uma pena. Pequeno até nos aiatolás que gera, sem a dimensão dos perseguidores de Rushdie. Onde estavam eles, que disseram sobre ofensas à fé, quando os Versículos vieram a lume?

Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!


*
Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há "papo-de-anjo" que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para ó meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.
Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...

Alexandre O'Neil

segunda-feira, outubro 19, 2009

Estratégia

Se o dia está de sol, de que vale pensar em estratégias para contornar as gotas da chuva? Que venha a molha, que logo se enxuga.

domingo, outubro 18, 2009

Estar no tempo

Como uma bênção este esquecimento de tudo o que tenho para fazer permitiu que o domingo fosse dia santo. O tudo seria assim tão importante que justificasse não ter visto a Madama Butterfly, pela crónica falta de tempo?

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos).

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para o pé do Fado,
Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente.
E sem desassossegos grandes.

F Pessoa

sábado, outubro 17, 2009

O terrorista professor

Acontecem às vezes períodos de hibernação por falta de assunto ou cansaço e indiferença perante os raros temas de comentário. O desligar ocasional do tempo que nos envolve justifica-se perante a ausência de algo que seja relevante dentro de 5 anos. Muitas coisas fantásticas têm apenas reservado o seu lugar em listas raramente consultadas de eventos. Afinal, quem se lembra de quem ganhou a maratona X ou o prémio Nobel Y? Quanto tempo duram esses momentos fantásticos? O que permanece de todos nós e qual o nosso objectivo? Que sentido tem marcar a existência? Quase sempre existimos como as pegadas deixadas na beira-mar à espera da próxima onda, primeiro muito bem delineadas, logo a seguir apenas esboçadas com os contornos mais imprecisos, finalmente a areia retoma a forma original como se nada tivesse acontecido. Apenas fica a geografia e o permanente diálogo dos elementos no escoar do tempo.

Reflectir é uma actividade cada vez mais perigosa e inconsequente nos tempos em que a moda é das poucas formas de gratificação. Voltando ao mar, ir na onda é a maior tranquilidade. Cair do tsunami, então, é o supremo gozo, a adrenalina na sua forma mais intensa. Há quem consiga, outros não. Quando a genética o não permite, há que procurar outros analgésicos que atenuem a dor do irresolúvel. Deve ter nascido aí a ideia dos valores e da moral. Algo a que poucos se apegam, mas serve de lenitivo a alguns.

Há um endeusamento da sobrevivência que nos faz esquecer a importância da vida. Sem notar a idiotice do que dizia, ouvi há dias um guia de um parque zoológico, afirmar convictamente que ali no parque, em cativeiro, os animais viviam mais 10 ou 20 anos, que no seu ambiente natural. Dizia isto como se de coisa vantajosa se tratasse, o pobre sobrevivente. Curiosa esta cultura do medo da morte, que gera todos os outros medos (da gripe, da carne de vaca, do terrorismo e tantos outros), esquecendo o único medo que se justificará, o de adiar a vida na sobrevivência a todo o custo. A morte surgirá inevitavelmente, quer tenha ou não havido vida. É por isso que um quantificador de vida acrescentado todos os dias é tão importante para que, no momento final, não se constate que o conta-vidas está a zeros...

No meio disto, sorrio da importância dos resultados eleitorais,dos jogos dos pequenos poderes dos desatentos. Fico mais interessado e divertido com o horror ao vazio do terrorista que vive em minha casa. Ele percebe que a vida é para ser feita acompanhado e, sempre que o deixam sozinho, reage, sem piedade, de forma bárbara com um atentado diferente todos os dias. Um dia derruba todos os vasos que apanha, noutro despeja os detergentes arrumados no armário, nunca se detém nem conforma com a vidinha que lhe querem impôr. Depois, olha-me sereno, a explicar-me que sobrevivência não é bem que aprecie. Cordial, pede a minha compreensão perante mais um atentado e oferece-me um dos seus brinquedos. Não é o perdão que quer, porque, para ele, como para qualquer terrorista que se preze, melhor será a morte que tal sorte. Determinado, este terrorista que vive em minha casa. Muitas vezes, mais se aprende com este terrorista professor do que com os homens. E para que conste, aqui fica o perfil.