segunda-feira, fevereiro 16, 2004

Concursos

Quem não é do meio, precisaria de ter uma imaginação delirante para ter uma ideia aproximada do que se passa. Isto é mais uma das manifestações de surrealismo em que vivemos. Passo a contar. Os médicos frequentam serviços considerados idóneos para fazerem a sua especialização por períodos que variam entre quatro e seis anos. Anualmente, têm uma classificação atribuída pelo Director de serviço e por outro médico que é chamado orientador de formação do Interno (o médico em formação). No final, faz-se um concurso de titulação, em que intervêem, além dos que o andaram a classificar nos anos anteriores, outros 3 elementos designados pela Ordem dos Médicos, geralmente de outros serviços do país. Neste concurso há 3 provas, a análise do curriculum do candidato (habitualmente um texto extenso e maçudo com mais de 40 páginas) onde o candidato descreve os sítios por onde andou a especializar-se, uma prova prática, que consiste na observação de um doente e elaboração do relatório, onde se fazem os diagnósticos e se apresenta um plano de tratamento e, finalmente, uma prova teórica de interrogatório livre sobre as matérias da especialidade.
Tentar avaliar as capacidades de alguém através de um exame onde se faz uma prova que consiste na repetição do que essa pessoa fez diariamente durante cinco anos é, obviamente, ridículo. Tanto mais que o modelo de realização desta prova é anquilosado e completamente distinto do que se faz no quotidiano e através do qual se prestam os cuidados de saúde nos hospitais. É um exercício lamentável de faz de conta, que em nada contribui para a avaliação dos doentes nem dos médicos. Mera perda de tempo!
A prova teórica são meia dúzia de perguntas sobre temas genéricos da especialidade, que geralmente podem ser respondidas por qualquer interno no segundo ano da especialidade, sem profundidade, sem se avaliar sequer a perícia do candidato na pesquisa de informação, que cada vez mais, é o que é útil assistencialmente.
Perante este panorama de há alguns anos para cá, as classificações nestes exames terminam geralmente com uma nota que oscila entre 19,5 e 20 valores. Com toda a gente a lamentar que isto aconteça, a falar de inflação e sem ninguém capaz de mexer nesta situação.
Mas por que acontece tudo isto?
Apetece-me dizer que é culpa do Sistema (pois, como no futebol). Este é o modelo que permite melhor impôr a vontade do sistema, porque completamente controlável pelo sistema. No fim de contas, o que se avalia nestas provas são também os serviços onde o candidato se formou. Avaliando, através da avaliação de um terceiro e frágil, a coisa torna-se menos dramática. Mas seria bem mais útil se os serviços fossem classificados através da avaliação objectiva dos cuidados prestados aos doentes, via auditorias externas e independentes. Aí estava algo que poderia pôr o sistema em causa, mas que certamente contribuiria para melhorar o funcionamento real dos serviços. Quanto à prova teórica, a maneira mais objectiva de o fazer seria, seguramente, através de uma prova de escolha múltipla com um número de perguntas acima de 100. Uma vez mais, o sistema perderia o controlo e a sua capacidade de dar classificações politicamente correctas. Mas se isso fosse feito, certamente teríamos médicos especialistas mais bem apetrechados teoricamente, capazes de tratar menos empiricamente os doentes. E que tal submeter os especialistas periodicamente a uma prova destas, para poderem manter o seu título de especialistas?
Mas não, com o método actual continuamos todos a viver no melhor dos mundos. O sistema mantém-se sem abalos. Fica tudo em casa. Só por isto acho que se mantém este método ridículo de avaliação dos médicos.
Só mais uma nota, provavelmente, nunca sairá da Ordem dos Médicos uma proposta que ponha em causa esta metodologia de avaliação. A Ordem é a Liga do sistema.

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