S GAVETAS CHEIAS DE QUASE NADA
Olhou para o móvel de gavetas e contou-as. Ainda se lembrava do comprimento vezes altura e não precisou de ir uma a uma para contar até 60. Se as estivesse a contar, o mais provável era que algo o distraísse a meio e tivesse de voltar ao início. Podia contar de 10 em 10, por exemplo, mas daí a nada já tinham passado 30 ou seriam 40 e teria de recomeçar. Assim, foi mais fácil 10 de largura e seis de altura, eram 60. Sessenta gavetas, castanhas, ornamentadas com um puxador metálico bronzeado pelo tempo, cada um com um pequeno retângulo metálico por baixo, para se lá colocar um papel branco com o conteúdo suposto da gaveta. Tinha chegado a uma fase em que se tinha tornado crente e lhe bastava ler o rótulo sem nunca ter a necessidade de abrir a gaveta para confirmar o que lé estaria dentro. Mesmo não tendo sido ele o autor da catalogação, nem de alguma forma ter contribuído para isso, acreditava piamente nos rótulos sem ter curiosidade pelo conteúdo. Aliás, verificar o que ia dentro de cada uma das 60 gavetas, seria uma tarefa demasiado cansativa e, ainda que estivesse numa fase de desconfiança relativamente a tudo e a todos, era-lhe mais cómodo ir pelos rótulos, acreditando cegamente no que eles lhe diziam. Adorava aquele móvel gaveteiro, com aqueles anúncios do que continha cada gaveta. Aquilo simplificava-lhe a vida e as escolhas. Cada anúncio era uma verdade que lhe dava uma imensa sensação de tranquilidade. Tinha havido tempos em que, descrente, precisava verificar todos os conteúdos, mas depois veio a facilidade dos rótulos e converteu-se aquela fé. Ultimamente, estava a parecer-lhe, que havia um número crescente de gavetas rotuladas com a palavra corrupto. Eram já várias em que surgia depois dessa palavra um número romano. Alguém, supostamente independente, andava a encher as gavetas de supostos corruptos. Sentia uma tendência crescente para que, dentro de algum tempo, o número romano chegasse ao LX. Não sabia exatamente quanto tempo iria demorar, mas essa era a sua principal curiosidade atual. Nessa altura, mais nada haveria dentro do móvel, a fazer fé nas etiquetas dos retângulos metálicos, por baixo dos puxadores bronzeados. Seria o momento de pegar fogo aquele móvel de cerejeira a ponto de nada lhe sobreviver. Foi então, que decidiu, num último esforço, abrir uma gaveta e viu que, apesar do rótulo, estava vazia. Com espanto, abriu mais algumas, quase sempre com o mesmo resultado. Seria possível que os autores das etiquetas das gavetas, maldosamente, o andassem a enganar e o móvel só tivesse gavetas vazias? Desconfiado, percebeu o seu erro de acreditar em tudo, sem tirar a limpo o que dizem os rótulos. Concluiu que era preciso não se ficar pelos anúncios e escrutinar os conteúdos. Era imprescindível fazer uma limpeza dos rótulos e de quem os andava a pôr ou ainda o haviam de engavetar. Assim foi feito e foi, dessa forma, que o móvel se salvou da fogueira anunciada.
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