VENHAM MAIS
Ainda há coisas raras que vêm por bem como receber um telefonema de um número desconhecido a meio da tarde. O número era desconhecido, mas logo houve uma sonoridade familiar na voz do outro lado. Sim, não estava à espera, claro que não, a gente não pensa, ouvir assim de repente, alguém que já não ouvimos há mais de 40 anos, porque seguimos caminhos diferentes e os contatos que tínhamos se perderam também como as visões matinais quando o nevoeiro fica cerrado. Mas o nevoeiro geralmente levanta. E, mesmo tendo o hábito de ter chamadas telefónicas muito curtas, ali ficámos durante largos minutos numa tentativa bisbilhoteira de recuperar as novidades de 40 anos, tanto foi o que se passou desde o tempo em que os projetos nos uniram, quando delineámos estratégias para o que seria o futuro, e cada um em seu lado, depois, fomos vendo o desmoronar de quase todos os nossos objetivos. Como percebo o teu desconforto pela surpresa da morte do nosso amigo, mas é assim a vida e, hoje em dia, corremos sempre o risco de telefonarmos para alguém que já não está do outro lado da linha ou darmos os parabéns nos aniversários que já não existem a quem deixou o Facebook aberto. É arriscado andarmos distraídos. Salvaram-se as histórias pessoais, os romances e amores, os filhos e os netos que agora temos. De certa forma, são eles que vão acrescentar futuro ao nosso passado. Percebemos que estamos meio conformados com a vida. Nós até nos safámos nestes caminhos do tempo passado, mas agora percebemos que há uma reta final e há um tempo meio urgente de nos revermos, agora que é mais fácil por já termos meios de contacto atualizados. Ainda vai haver tempo para continuarmos a conversa e vermos até onde nos transformámos no tempo que passou e o que fizemos aos sonhos. Estaremos assim tão diferentes? Para já, vais enviar-me o teu livro para te rever um pouco. Olhei agora para a prenda que me deste aos 23 anos.
Fico grato à amizade, esse mistério que pode hibernar durante mais de 40 anos e tem mesmo assim esta potencialidade de renascer. As surpresas tem o encanto de matar as rotinas, mas é muito desconfortável estar muito tempo longe dos amigos. E quantas vezes isso acontece só por uma questão de rotina? Incomoda esta forma distraída de aqui andar.
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