Depois de uma sexta-feira nauseada apesar da domperidona, preparava-me para um fim-de-semana calmo de reorganização de papéis. Estava eu nessa actividade quando, durante uma chamada telefónica, a minha mãe que descrevia em directo o desmaio. Mais uma corrida estrada fora a imaginar cenários, nesta viagem já a tornar-se rotina, até chegar a um cenário de todo inesperado. Sob o alpendre, sentado na cadeira, debaixo do chapéu-de-sol verde, jazia (quase!) o meu pai. O médico que tentei ser detectou palidez, ausência de resposta a ordens e à dor, pulso ausente, movimentos respiratórios presentes, desvio conjugado dos olhos, flacidez dos membros. À falta de melhor puxei a cadeira para dentro de casa e atirei-o para o chão de pernas para o ar. Melhorou ligeiramente a palidez, o pulso melhorou qualquer coisa e comecei a chamar reforços. O 112 e uma médica. Os bombeiros devem ter chegado um quarto de hora depois, a médica logo a seguir. Aos poucos as coisas foram-se compondo e os serviços de urgência receberam menos um doente. Em vez de arrumar papeis, arrumei ideias sobre a incapacidade de raciocinar com clareza em circunstâncias destas, sobre heroínas que aguentam estes sustos uma e outra vez e se mantêm de pé, generosamente em combate de uma forma já quase ultrapassada. À noite, durante o regresso, impressionei-me com a previsibilidade destes episódios. Prognósticos fáceis de fim de jogo. Factor desencadeante, baixo débito, por estase periférica em circulação cerebral limiar. Como um lago onde os peixes tivessem subitamente ficado sem água deixando os peixes em movimentos rápidos, de cauda, atordoados, também os neurónios ficam hibernados, a fazer sacudir os membros, até que chegue de novo o líquido que de novo os faz nadar. E tudo acontece segundo um horário quase exacto de episódio para episódio. Pela noite estrelada, vou andando por entre as intermitências da vida.
Precisava de um domingo de repouso e consegui! O rapto no serralho já estava à espera de ser visto há uns dias e foi o primeiro momento alto do dia. Há um tipo que há 250 anos, nos fala de coisas simples como o de resistir por ideais, da possibilidade de o fazer (continuo a acreditar que ainda é, mas já somos poucos), de que a morte pode ser uma passagem para a paz, e de que o verdadeiro poder é a generosidade de perdoar e respeitar a vontade dos outros. Este é o poder que dura séculos, bem diferentes dos breves poderes que matam por necessidade, por medo. Os poderosos não têm medo, não precisam de subidas imediatas de cotações das acções. Bem diferente, do que se vê no Fiel Jardineiro, o filme da tarde. Também aqui a morte garante melhor a paz do que a força bruta do poder.
No meio disto, a discussão das caricaturas de Maomé não merece mais comentários do que os feitos por Miguel Sousa Tavares no (para quem paga, claro!) Expresso. O Hemingway a que temos direito, quando não fala de FCP, fala direito geralmente e lá diz tudo o que há para dizer.
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