domingo, novembro 06, 2005

Pelos últimos dias

Finalmente a pausa para reflectir ao fim de três dias de entorpecimento executivo.
A obesidade foi o tema de três dias de trabalho de manhã até à noite, que agora quase começa às 5 da tarde. Mais do que a chuva, isto chateia-me no Inverno, os dias curtos.
Durante 3 dias pretendi que algumas pessoas reflectissem sobre a obesidade. Fiz-lhes um programa, que teve mais de metade do tempo para pensar sobre o problema e uns intervalos vespertinos para publicidade que garantisse o tempo das manhãs.
Ainda não percebi a razão por que as reuniões marcadas para as 9 horas têm sempre de começar depois das 9 e meia. Logo isso começa a chatear-me. Mas enfim. Pior que isso é a incapacidade de reflexão. Há qualquer coisa que bloqueia as ideias, que não deixa ir além do óbvio. É claramente, óbvio, que a obesidade está a ter um crescimento absurdo neste mundo globalizado e que esta crise surgiu no últimos 15 anos. Logo, a genética está inocente nesta epidemia. É o ambiente, estúpidos! É, igualmente, óbvio que é a alimentação e o sedentarismo que leva ao problema. Vai daí, a receita até é fácil: melhor comida (menos energia ingerida), mais exercício (mais energia consumida) e toda a gente com obesidade começaria a emagrecer. Só que os gajos são estúpidos e não se portam bem. Deve ser só para chatear os médicos! Os obesos e os pais dos obesos, que esses são outros monstros que passam o tempo a atafulhar os seus filhos de açúcar e batatas fritas. Cambada de preguiçosos e pais negligentes que só lhes dão comida junk. Portanto, para maioria destes crânios, vamos continuar a fazer recomendações, a educar as pessoas (Oh, como gostam de educar a populaça!), a dizerem-lhes para irem cozinhar e fazer corridinhas (de preferência com ténis de marca ou no Ginásio da moda lá da zona). Ok, só que as pessoa há mais de 15 anos, só porque são estúpidos até à última potência, não fazem nada disso e continuam a engordar que nem porcos.
Quando se tenta ir à causa das causas da obesidade, a coisa fica turva. Para mim e até me provarem o contrário, a coisa passa-se assim: 1) é preciso dar cabo daquela sensação chata que nos pede para comermos, aquilo que todos mais ou menos conhecemos; 2)até sabemos que uma pera, seria melhor que uma merendinha lá no bar, mas não há pêras no bar e até não houve tempo ontem para ir comprar fruta ( a mercearia do bairro tem-na mais cara que no supermercado e este foi morar para longe), logo comemos aquilo que há; 3)depois uns franceses e uns americanos, fizeram umas contas e mostraram com toda a clareza que os açúcarados e as gorduras são bem mais baratos que as frutas e os bens da horta, logo, para resolver o problema da tal sensação, o mais sensato em termos de racionalidade económica é mesmo comer aquilo que se não devia comer; 4) isto é o que faz quem conta os euros, os outros até têm empregada para ir ao supermercado comprar o que devem. São os que engordam menos, claro, que isto da obesidade também é privilégio dos mais pobres; 5) são os mesmos que andam diariamente sentados nos carros em filas pelas ICs 19 e que tais ou de pé nos transportes públicos e perdem nisso todos os dias umas 3 horas e depois não têm o tal tempo para ir fazer jogging... (e fazem bem, porque lá nos sítios onde vivem, ainda lhes tiravam as sapatilhas e tinham de ir descalços o resto do precurso até casa); 6)é que os gajos até nem são estúpidos, não têm é dinheiro!
O exercício dirigido à inteligência de todos os crânios que meditam é mais ou menos este: Por que terão eles que morar nas periferias? Por que não têm maiores salários que lhes permitissem escolher melhores alimentos? Por que só têm 1 hora por dia para estarem na cozinha? Ou de outra forma, por que será que o crescimento da Dona Economia, não lhes melhora as condiçõe sde vida? Pois, enquanto o fosso continuar a aumentar, a epidemia aumenta e o vírus que a causa (o capitalismo, neo-liberalismo) prolifera. E vai afirmando que a culpa é das pessoas, elas podem escolher (ouvi isto duas vezes neste Congresso!!!). Não podem nada escolher, ou ainda não perceberam que ter as montras da Hermès não aumenta o poder da escolha a ninguém. Essa opção será só para os mesmos de sempre, eles é que poderão escolher e escolhem pelo bom, como os outros também escolheriam se pudessem. Mas não podem! Conseguiu ser surpresa para mim, que até nesta coisa simples da obesidade, a luta de classes afinal ainda continua a existir. De um lado a Indústria alimentar a berrar a liberdade de escolha e a impossibilidade de proibir regulando, do outro os que não beneficiam com a batata frita a berrar pela legislação proibicionista e reguladora. Proibir a publicidade à junk food, a existência de lojas de comida rápida num raio de distância das escolas, as máquinas de vendas de comida em escolas e locais de trabalho, por exemplo. Regular, manipulando preços de comida, taxando a má comida, subsidiando a boa. Mais Estado, obviamente! E até estou optimista, pois, a despesa com a obesidade promete ser tanta que até o Estado vai estar condicionado a intervir. Pode é ter de ser com outros actores, mas mesmo com os actuais, a coisa promete.
Mas sente-se que este combate é desigual. De um lado, uns que não têm capacidade de marketing porque nada ganham com o investimento publicitário, do outro os todo-poderosos para quem os custos dos anúncios são um factor gerador de maior poder. Poderá o Estado perceber o problema e investir limitando a ganância dos poderosos de agora? Aí começará a controlar-se a epidemia, atacando o vírus, matando-o. Mas não há outro caminho.

Foi curioso passar pela SIC a dizer estas coisas. Foi curioso, perceber que aquela imagem cativante dos estúdios que nos mostram em casa, é afinal um espaço escasso, frio, quase um armazém de paredes negras a toda a volta, exceptuando o que está na frente das câmaras. E viver aquele frenesim, aquela falta de tranquilidade. Perceber, finalmente, que de cada vez que falei da casa das causas a pobre jornalista sentia uma necessidade incontida de passar à frente para outro tema. Foi bom sentir-me incómodo.

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