sábado, dezembro 10, 2005
Férias
No aeroporto ao fim da tarde chegam aos balcões de check-in carregados com volumes de televisões, altas-fidelidades, micro-ondas, embrulhados em cartão sobre o que escreveram em letras negras, como eles, o destino. Voltam à terra transportando os bens de lá (cá). Alguns por lá ficarão, outros voltarão para novos regressos com novas cargas.
Ao vê-los imaginei o caminho errado por que optaram (eles ou quem?), o caminho da viagem de vai-vem, consequências de independências não se sabe bem de quem. Percebo a ideia infeliz do nacionalismo, este desejo que não entendo de pertencer a uma terra com arame à volta e não de um mundo sem cancelas. Seria lindo naquele dia de reinício de trabalhos nas Nações Unidas, ver o Secretário-Geral embaraçado no discurso dizer, «comunico à Assembleia o pedido de não independência destes países africanos e asiáticos» apresentando de seguida uma lista infinita de países a exigirem a integração de pleno direito no bem-estar que fabricam para o hemisfério norte.
Alguns dos tiranetes que os dominam tentariam ainda um movimento de resistência apoiado pelos fabricantes de material de guerra, mas não seria longa a luta.
Foi neste clima de irrealidade que iniciei a viagem até Cabo Verde. Um jantar TAP e uma audição de Carmina Burana depois começava a descer para uma ilha que não via. Eram quase 3 da madrugada.
Na rua o ar era morno e seco, mas a camisola vestida não incomodava. Seca foi a espera até tudo estar pronto para a partida para o hotel. Logo seguida pela surpresa de um percurso asfaltado e em auto-estrada. Pouco africano. O começo do Sal sem sal. À hora a que chegamos o hotel na Ponta Negra era um poiso desejado e já entrevisto na Net uns dias antes. No dia seguinte, sob o sol, já parecia estar em Marraquexe sem montanhas. Funana no deserto da ilha do Sal.
Está-se bem. Areia à Algarve, praia longa como a minha (mesmo sem falésia), Primavera em Dezembro no morno do ar que continua todo o ano e uma brisa ligeira, condições de convite à leitura do fim de Budapeste do Chico e depois do Quadrado do Manuel Alegre. Estirado nas esteiras nos intervalos de comer a comida europeia do tudo incluído. Sem o sal da lagosta nem da cachupa. Uma surpresa boa foi o fim do linguarejar em português, substituído pelo som do alemão e do italiano, tanto mais apropriado quanto estava a ler o Chico. Sabe-me sempre a férias este deixar de ouvir o linguarejado nacional. Para a irrealidade da localização contribuiu também a ausência do falar português dos locais que sempre me trataram inicialmente como se fosse italiano ou alemão nas saudações que faziam. Jambo! apetecia-me responder-lhes, mas afinal estava noutro local e sempre dizia bom-dia! Depois falavam em português claro, mas era como se português ali fosse raridade e era. Entre grogues e ponche e intervalos de estiramento os dias passam e percebo quanto me apetecia estar assim em férias sem a alvorada das 7 horas na visita a qualquer coisa. E perto das 6 da tarde, chega o pôr do sol, mais ou menos pintado destas zonas.
Depois do jantar, o «espectáculo» de musicol com meninas e meninos a dar à perna sob um som americanoide mais do Norte ou mais Central. Só na véspera de voltar um tocador de rabeca tocou em Caboverdês. Mas as mornas andam por outros lados na voz de Cesária, em tourné internacional.
E o tempo passa, por vezes à beira mar, outras na piscina embrenhado em leitura ou audição da Paixão de São Mateus. E acabados os livrinhos e na intermitência obrigatória da leitura das Intermitências da Morte a que a Ana me obrigou (um desconforto confortável), acabo por dar comigo a ler o Confessor de um tal Daniel Silva. Mais uma história pouco lisonjeira para a Santa Madre Igreja Católica e Romana. E fico a meditar na coincidência do êxito dos Dan Browns e companhia, sempre este malhar no Vaticano. Eu que não acredito em coincidências, deliro na possibilidade de uma campanha subreptícia anti-Vaticano induzida pelos senhores do Império, descontentes com a desaprovação de algumas das suas iniciativas a favor do «Bem». Por estes dias, lá longe, Harold Pinter faz uma alocução notável na recepção do Nobel. Sabe bem ler quem, mesmo nas circunstâncias de vida em que está, se recusa a deixar de pensar. E tantos vivos-mortos por aí se arrastam em vidas de nada!
Este far niente de brisa e morno foi interrompido, sem grande agitação pela volta à ilha com passagem por salinas de onde quase já não sai mais sal, banhos em água hipersalgada, visões de miragens e de lugares de nome (imagem de Buracona no início) de dificil leitura antes do horário nocturno. Por toda a ilha a presença constante do Benfica (Tud Po Benfica), aparentemente a grande marca de domínio colonial destas paragens.
Bom também a visão de crianças a vir da escola, promessa de futuro melhor, vestidos de igual numa imagem de pioneiros que já não serão, mas ainda lembrando Amílcar Cabral ou imagens da outra ilha onde o povo é gente mais que número de estatística de miséria.
Agradável tempo de intervalo em início de férias que vão durar ainda mais uma semana, mesmo sem a possibilidade de audição do resto da Paixão à beira-mar, que ficou guardada numa caixinha pequena algures num banco de avião.
E o tempo decorre na imortalização dos tempos decorridos. Ontem foi a visão dos tempos de há quinze anos, quando o cinema começou cá em casa. Hoje olho muitos centímetros de caixinhas de fitas enroladas, cheias de memórias e o difícil é perceber por onde começar a gravar os tempos que foram, mas que voltam quando faço estas coisas. É óptimo estar de férias, mesmo com o remorso do trabalho que falta fazer.
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