O aumento crescente da prevalência das doenças crónicas, tem tornado a prática da Medicina progressivamente mais complexa. Com frequência, no mesmo doente, coexistem patologias de várias especialidades, exigindo apreciação por diferentes especialistas, tendo em vista a optimização dos cuidados médicos. Um doente diabético, por exemplo, tendo a gestão dos seus problemas de saúde centrada idealmente no médico de Medicina Geral e Familiar, carece com frequência de apoio de outras especialidades, como a Endocrinologia, a Cardiologia, a Nefrologia e a Cirurgia, entre outras. Cada vez mais, os médicos deixam de ter os seus doentes, porque os problemas de saúde destes são melhor geridos pela cooperação de vários especialistas, contribuindo cada um com os seus saberes para a sua resolução. Assim, deverão os doentes passar a ter os seus médicos. A gestão das doenças nestes casos implica interacção e comunicação entre os vários técnicos, a qual se não consegue com a actual estrutura de comunicação, resultando, com frequência, uma prestação de cuidados, no mínimo, fragmentada. Nalgumas situações, podem mesmo ocorrer erros, por exemplo, com duplicação quer de prescrições de fármacos, quer de exames auxiliares. Nas condições da prática médica dos nossos dias, com o tempo de duração das consultas progressivamente mais encurtado pela pressão do número crescente de atendimentos, não há muitas vezes disponibilidade para escrever aos colegas a informação necessária. E mesmo que isso se faça, vai muitas vezes escrito com letra dificilmente decifrável… Estes são problemas que, como médico, me confronto quase diariamente e que seriam evitáveis com medidas simples numa altura em que muito facilmente temos (ou deveríamos ter) nos consultórios um instrumento fundamental para prestação de cuidados: um computador com acesso à Internet.
É fácil imaginar que o acesso limitado à informação produzida por outros colegas sobre um doente específico leve não só às já referidas duplicações de meios auxiliares de diagnóstico e mesmo de prescrição de medicamentos, mas também a referenciação indevida a outras especialidades, consumindo consultas desnecessariamente. Mesmo que esta realidade não acarrete directamente complicações dramáticas para a saúde do doente, dela resultam custos acrescidos nos cuidados. Isso traduz-se em ineficiência dos sistemas de saúde, numa altura em que o combate ao desperdício deve ser uma prioridade e uma exigência no Serviço Nacional de Saúde.
O desenvolvimento das Tecnologias de Informação, permite, hoje em dia, obviar a estes problemas do Sistema de saúde e pode contribuir para uma melhor prestação da continuidade dos cuidados médicos, evitando recurso aos serviços hospitalares e de emergência, melhor uso das estratégias de prevenção, melhoria dos cuidados prestados no alívio dos sintomas e controlo da doença, com resultante maior satisfação dos doentes. Com efeito, é possível que os dados clínicos de um doente observado num hospital de Lisboa, possam facilmente ser partilhados pelo seu médico de família e por outros especialistas onde tenha de ir, mesmo quando, deslocado no Porto, tenha um achaque súbito que o leve a um Serviço de Urgência. Com esta rede de informação ganharia o SNS e, obviamente, o doente.
Não deixo, pois, de estranhar que de uma forma generalizada não se implementem as medidas que permitam atingir estes objectivos. Isso, possivelmente, dever-se-á à existência de barreiras ao nível do Sistema, dos médicos e, talvez, dos próprios doentes. Ao Sistema, porque se inibe de investir, mesmo sendo de admitir que o retorno estaria assegurado pelos ganhos de eficiência. Aos médicos, exige-se uma nova atitude cultural, para que deixem de se sentir donos do doente e da informação que deles colhem e passem a sentir-se elementos de uma equipa que concorre para a gestão do processo patológico do doente. Aos doentes, a decisão sobre se a informação que fornecem aos seus médicos, pode ser partilhada pelos que os cuidam e de que forma. Este último problema, que entronca com a questão do segredo médico e com a protecção dos dados individuais, é muitas vezes invocado com fundamentos legais para inviabilizar a partilha da informação clínica dos doentes entre os vários médicos que lhes prestam cuidados e tem obstado, por exemplo, a que nalguns hospitais continue a não existir um processo único do doente. Está-se em abstracto e de forma paternalista a proteger alguém a quem ainda se não perguntou se quer ser protegido dessa maneira. Pessoalmente, colocado na posição de doente, não tenho dúvidas que a minha informação clínica (disponível no meu «portal de doente» - o Google Health disponibiliza um esboço limitado do que isso pode ser- protegida por uma senha de que eu seria o dono, e acessível aos médicos de que, eventualmente, possa necessitar para me tratarem) me protegeria melhor do que a informação dispersa e, eventualmente, inacessível. E se eu posso expressar a minha vontade, julgo que isso é um direito de todos os doentes. Para os mais cépticos a este respeito, sempre se poderá garantir o sigilo da informação, determinando que caberá ao doente fornecer (ou não) aos clínicos a senha de acesso à sua informação. No entanto, e por defeito, a informação deveria estar acessível e ser facilmente partilhável.
Julgo que este é um caminho e um tema de debate que urge iniciar na Saúde em Portugal. Os ganhos parecem ser tão óbvios, que até custa verificar que se não avance nesta direcção desde já e se continue a desperdiçar o dinheiro dos contribuintes e a não fornecer os melhores cuidados possíveis aos doentes. Doentes, médicos e engenheiros, uni-vos!
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