domingo, setembro 04, 2005

Em Gotemburgo

Cheguei aqui ontem e rapidamente fiquei com a sensação enorme de uma grande viagem pelo tempo. É ter sorte passar em poucas horas do primitivismo ao que poderá ser o exemplo de civilização mais avançada deste planeta. Respira-se a ausência de ansiedade, a segurança constante, a organização serena em tudo. Na cara das pessoas, hoje à tarde na feira Popular da terra, alguns sorrisos serenos e, se calhar por isso, menos intensos, sorrisos sem o nervoso gerador do gozo, sem a alarvice do costume. Assépticos, mas nem por isso menos interessantes. Falta-lhes a esperança, talvez. Mas a esperança é um arrepio que as garantias não permitem. A esperança só é possível quando algo ainda se não tem e a sensação com que fico é que têm tudo o que precisam. Felizes? Não sei! Se calhar a felicidade exige alguma incerteza no futuro e menos certezas. Há, em certa medida, o espaço da savana e a tranquilidade do leão depois do repasto, barriga cheia, que há dias andei a ver nesse encantamento de paisagem sossegada, onde se mata por necessidade e equilíbrio, sem perversão. Os animais selvagens ensinam-nos essas virtudes e mostram-nos dimensões que bem queria ver noutros civilizados.
No isolamento de mundo em que andei nem notícias tive do furacão de New Orleans. Vejo agora a América que eu sei que existe. Help! Help! Help! Um grito repetido, doloroso, que se entranha em nós. Estive ali naquela ponte caída, naquele Centro de Congressos, naquela avenida do hotel W, passei por Atchafalaia e já chovia, chovia muito naqueles dias em que lá estive. Como estará o Café du Monde? O homem do saxofone voltará a tocar? E o Jazz Preservation Hall, terá sido desta vez que morreu? Só vejo nestas imagens a dor, que alguma inconsequência não soube evitar. A tal América que eu sei que existe. A tal que não é exemplo para nada, apesar de o reclamar e exportar, mundo fora, um modelo vazio de acentuação de desigualdade crescente e perversa, selvagem, direi mesmo. Está tudo descrito, como um fado, no Futuro do Sucesso de Robert Reich que também vou lendo nestes dias. Quando iremos acordar? Que nos despertará?
Talvez as lições da selva onde se aguçam os sentidos na busca da sobrevivência, só, nessa função de grande dignidade. Ao menos os búfalos cheiram os leões, percebem-nos na vizinhança e sabem unir-se em grande manada e os leões vão esconder-se mais à frente. Mas a manada sabe unir-se e avançar segura contornando o predador.
O safari continua a povoar-me de ensinamentos. As imagens do espaço longo continuam a acompanhar-me. Vou deixar aqui mais uns momentos que por lá registei, dia 26 de Agosto, na espera de voltar a ter um acesso, que agora chegou em Gotemburgo:

Nota: Escrito depois do desastre que comprometeu a visão do texto no computador, num clima de sentimento de negligência e irritação com a história. Embora já aliviado por ter a sensação de outras negligências bem mais complicadas pelas quais não me lembro de ter passado. De qualquer forma, vou escrever com alguma raiva pelo sucedido.

De pouco vale, estar-se num ambiente acolhedor, na beira da piscina numa tarde de clima ameno se soubermos que é perigoso passarmos a porta que nos levaria à rua e ao deambular pela cidade. Mas desde o primeiro instante, quando nos trancam a porta do shutle, que se fica com a noção de que assim vai ser. Nairobi é, dizia-se no Lonely Planet uma cidade perigosa, com pequenas áreas de alguma segurança. Tudo aqui o confirma, quando, por exemplo, o porteiro nos diz que só será seguro ir até ao Banco de táxi… O que restou foi ficar prisioneiro na beira da piscina, à espera de libertação matinal para zonas mais recônditas, onde os males das cidades se façam sentir menos.

Depois de um despertar entusiástico pelas seis da manhã, começámos por aguardar a chegada do jeep, que, claro, tinha ido esperar-nos ao Nairobi Safari Club…
Com algum atraso, sempre recuperável quando se está de férias ( e se calhar todos os atrasos são recuperáveis, porque, verdadeiramente, só a morte o não é e essa todos achamos que nunca chega atrasada) lá fomos saindo de Nairobi, com trânsito meio caótico na outra faixa da auto-estrada, observando a maior densidade que já tinha visto de carrinhas de oito lugares, aqui chamadas matatus e que, na verdade, são uma espécie de táxis. Quase se poderia dizer que esta é a cidade onde mais se anda de táxi. Faltam os transportes públicos. A alternativa parece ser a de táxi ou a pé. Como na véspera já tinha notado, anda por aqui muita gente a trabalhar para a linha, em marcha rápida.
Na nossa ignorância, perguntamos ao Charles (o guia) se iríamos ver animais pelo caminho. Não, senhor, até Samburu, apenas iríamos ver pessoas. E assim foi acontecendo. Sempre na beira da estrada, gente a pé, uns sozinhos outros acompanhados por molhos à costas, ou as mais variadas cargas transportadas sobre bicicletas que vão sendo empurradas à mão. Quanto mais penetramos para Norte, mais surgem na beira da estrada crianças que nos acenam como há muitos anos se fazia nas aldeias em Portugal.
Com o habitual pretexto do descanso e da satisfação de algumas necessidades despertadas pelas necessidades que o tempo de caminho vai gerando, parámos numa Curio Shop, curioso nome como aqui se designam as lojas de vendas de bugigangas artesanais. Lá nos submetemos a uma sessão de bolsa com cotações de venda surreais e ofertas de compra indecentes, num jogo, por vezes, ridículo que pode fazer-nos pensar nos mecanismos da geração do preço de uma mercadoria. Não há modelo matemático, aqui se percebe que é pura especulação entre oferta e procura, uma luta de emoções, mais do que de razões ou reais custos. Desta vez até tivemos intervenção imperialista na discussão. Dois soldados ingleses que aqui se encontram em treino militar (fico a pensar se estarão realmente a preparar-se para defender a pátria, pois as condições de terreno que aqui verifico não me fazem lembrar muito a Grã-Bretanha) decidem informar-me que o preço que me pedem é ridículo. Fico na conversa com o vendedor, atemorizado, que o colonialismo já passou por aqui e ele vai-me dizendo, que já os expulsaram, mas que os gajos têm a mania e eu confirmo, que os tipos são imperialistas, que foi incrível a intervenção que os soldados ali tiveram na defesa do ocidental contra o infiel (leia-se explorado). Não fizemos negócio, mas solidarizamo-nos, a nossa discordância não deu guerra e terminamos com um Hakuna matata, se calhar convencidos, um e outro, que poderíamos ter ido mais longe.
Continuámos, até sermos, finalmente parados por uma operação stop, prática muito frequente por estas bandas ao que parece que na busca de armas. Depois ninguém revista coisa nenhuma e tudo segue. Hakuna matata.
O caminho continua com a observação frequente de múltiplas escolas junto à estrada, plantações de café e de fruta para conserva. Mais além, na vizinhança do Monte Quénia, surgem as grandes quintas de trigo à maneira de Out of Africa. Os restos do Império ainda presentes.
Numa segunda paragem numa Curio lá chegamos a um acordo só possível depois de oferta de uma caneta e umas tentativas de câmbio de dólares, euros e shillings quenianos…
A fase final do percurso até Samburu é uma penosa picada de terra batida (ou de costas batidas pelo jeep) que dura cerca de uma hora.
Entrada a reserva, pouco à frente surgem os primeiros elefantes para algum desespero do Charles, que já tinha visto bastantes. Mas acabamos por chegar a boa hora para almoço.
A Samburu Lodge é uma estalagem inspirada em bom gosto imperialista, com várias cabines isoladas ou em faixa junto a um rio, onde loco começámos por ver crocodilos e pouco depois mais elefantes e girafas. Isto ainda se vai tornar monótono… Mas não, depois do almoço, trilho fora, no jeep agora descoberto para podermos caçar melhor o que nos rodeia. Rapidamente, surgem gazelas, órixes, mais elefantes, antílopes elegantemente vestidos e galinhas da Guiné, que devidamente registamos. Numa pequena depressão da estrada o jeep engasga e vai abaixo por bateria fraca. A recarga surge rápida. Outro jeep aproxima-se pela frente, encosta para-choques no nosso e começa a empurrar. De súbito, o motor funciona provando uma vez mais que hakuna matata. E continuamos a caçada. Até ao fim do dia, ainda tivemos, leões, leopardo na árvore e no chão e búfalos. Pronto, já cá estão quatro dos big five. Isto está a render. A caçada destes últimos é feita com a ajuda dos rádios dos carros de turistas. A coisa começa quando alguém avista um destes bichos, depois faz-se uma chamada e cercam-se os ditos. Os cliques das máquinas não param. Apesar do gosto que isto me dá, depois de estar frente a um elefante ou um leopardo, imagino a sensação que terá dado em tempos a outros, carregar no gatilho em vez do disparador da máquina. Agora, percebo que este safari não passará de uma espécie de masturbação da caça. Acho que nestes instantes se percebe Hemingway ou mesmo o Miguel Sousa Tavares…
Há, ainda assim, o gozo da descoberta do animal, a escolha da pose quando possível e chega-se ao fim do dia com o corpo moído como já não sentia há muito dias e nem os macacos a miar nas árvores me impediram de rapidamente cair no sono. Ajudou o calor do início da noite, que às quatro e meia já não era assim tanto e acordei. O jogo ia continuar.

A manhã começa com a descoberta de zebras, além de uns agora desprezíveis elefantes, gazelas e outros que tais vistos na véspera. Mas sobretudo há a luz fresca do amanhecer, uma suave brisa no mato. Até que chega o momento da chita e das suas crias que, de um dos lados da estrada, olham, gulosas, os órixes, do outro. Fica-se por ali um pouco e sente-se que o grande momento já não é a descoberta do bicho, nem a contemplação das suas poses, mas o sonho de realização do Discovery Chanel. Quer-se caça, sangue, espectáculo selvagem. É curiosa a estética humana.

Depois dos animais e das frustrações (?) que nos causam, passamos ao número seguinte, a visita a uma aldeia Samburu. A coisa é um pouco folclórica, cheira a alguma falsidade, mas é ainda assim, reveladora deste mundo estranho em que estamos. Hoje, dia 26 de Agosto de 2005, no planeta terra ainda há quem faça fogo com dois paus, seja nómada, tenha por habitação coberta de bosta de vaca, formada por três cubículos menores que qualquer cozinha de prédio novo, onde habitam homem, mulher e filhos (além de uma pequena cabra, claro).
Começa-se depois o caminho inverso, mas durante mais de meia hora todos permanecemos calados.

A continuação do circuito é feita para Abardares, onde se almoça no Club de Golf. Aqui se entrega a bagagem para depois se partir de autocarro para The Ark, uma zona inesperada, em que subitamente se deixa o quase deserto e se penetra numa floresta densa. Floresta tropical de repente em África. Chega-se à estalagem The Ark e tem-se um briefing com todos os ingredientes de americanada. Nem as piadas giríssimas faltaram. Tem programa de alimentação de pássaros, chá, proibição do tabaco, obviamente, e promessas de toda a selva.
A estalagem tem quartos para ficar acordado a noite inteira. É por isso que não estão aquecidos (e está frio!) e a casa de banho é daquelas em que se não consegue cortar as unhas. Frente à estalagem há um lago. Nas margens do lago deitam sal, uma ideia que além de ser possivelmente geradora de hipertensão na bicharada (que adoram o sal, mais do que os portugueses bacalhau), lhes vai criando uma dependência. E é ver, dos três níveis de balcões, elefantes e búfalos, à vez, subirem ao palco. Através do vidro ou de uma guarita vê-se uma narração cénica tipo Manoel de Oliveira, com animais que se mexem vagarosamente de um lado para o outro, com algumas marradas e promessas de sexo. De tempos a tempos, entra em cena algum pequeno animal que cruza o palco de ponta a ponta. Nesta actividade, apesar de tudo repousante, os espectadores permanecem em silêncio conforme solicitado (salvo alguns espanhóis que se enganaram e ficaram na plateia em vez de subirem também ao palco). E a cena repete-se noite fora, iluminada por holofotes para encandeamento de animais, escravizados pela dependência do sal, sendo que quem quiser pode ficar de chamada. Tocam uma buzina se chegar algum dos bichos raros… Walt Disney produções nesta África com surpresas. Umas boas outras assim. Já passa da meia-noite, vou espreitar…


Depois disto houve o Lago Nakuru com as margens pintadas côr de rosa pelos flamingos equilibristas, dos espaços sem lime, os rinocerontes pachorrentos e Masai Mara dos caminhos sem fim, dos espaços sem limite. As carcaças feitas de noite para o alimento matinal dos leões e filhotes e dos abutres necrófagos. Os hipopótamos estacionados no rio Mara que os gnus recusam atravessar provavelmente por um receio meio inconsciente dos dentes de crocodilos. Houve a África grande do pôr do sol e da luz clara da manhã. Agora que já estou Out of Africa, algo dela me entranha e lembro-me de ter pensado que teria feito um poder como o de Cuba num país com os recursos que tem o Quénia. E a liberdade adquire alguns significados menos convencionais.
E eu que tenho esperança ainda acredito em alvoradas de luz, com a frescura que quero inspirar toda de uma vez, num acto de purificação apetecido.

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