quinta-feira, setembro 29, 2005

Não dá...

Quando se vive numa terra de sol, onde nada é preciso inventar, onde basta ver lá fora e ser original cá dentro, só podemos dar graças. Ainda por cima temos o sol e o azul do céu e mar, tanto mar. Não, não nos podemos queixar. Este é certamente, dos sítios onde o viver tem melhor relação qualidade/custo.
Temos é de perceber que a terra não dá, se nada lá for semeado. A sementeira é o custo. As ervas daninhas o produto (se nada for semeado, claro).
Vem isto a propósito do facto vivido de uma extensão de 3 metros para colocar uma tomada ser uma obra que, num hospital central e universitário, demora 15 dias a realizar.

terça-feira, setembro 27, 2005

Um bom debate

Valeu a pena o serão. Acontece raramente, mas desta vez a RTP teve um debate interessante e informativo. Os ingredientes eram interessantes. Um Ministro que demorou a sê-lo e um cordeiro muito mais lobo que gosta de parecer, de garra afiada, faminto e devorador. Só que desta vez, foi engolido de forma suave, mas bem conseguida.
Foi comovente ver o Dono das Farmácias estar preocupado com o bem estar dos doentes, da população em geral, dos contribuintes, a abdicar da percentagem nas receitas, a procurar reduzir o nível das receitas. Com o ar sério que o poder tem, aquela mostra de ser respeitável, que se desmonta em dois tempos. Basta olhar para a natureza das coisas e para a história da ANF.
Foi igualmente comovente ver a jornalista a acreditar que o Ministro está para durar, e a ajudar a desmontar o embuste do Cordeiro.
Nem faltou um industrial a mostrar abertura a novas reduções de preços dos medicamentos.
Mas há sempre alguma coisa que não corre bem. Desta vez foi a APDP a tentar mostrar que os diabéticos são os únicos doentes crónicos do mundo e a reivindicar a medicação gratuita. E os asmáticos, os dementes, os deprimidos e todos os hormonodeficientes e etc, etc? É que bem espremidos, teremos medicação de borla para todos e depois não queremos mais impostos, não é? Era preciso alguém ter explicado a diferença entre diabetes tipo 1 e tipo 2.
Já agora, também não percebi qual seria o problema de termos farmácias públicas, do Estado. Mas isso é coisa que também só passa pela cabeça de povos ensandecidos como os suecos...

domingo, setembro 25, 2005

Ruído

Está na moda o ruído. Uns evitam-no, outros são acusados de o fazer. Os nossos políticos andam com as orelhas a arder de tanto ruído.
Por mim, algum ruído sabe-me a música. Anima-me. Fico sempre animado quando os aparelhos ficam desafinados por algum ruído ambiente. As interferências construtivas e reparadoras. Depois há silêncios concordantes que nada dizem, mas a estagnação é mal cheirosa.

Roubo a trova:

Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.

Pergunto aos rios que levam
tanto sonho à flor das águas
e os rios não me sossegam
levam sonhos deixam mágoas.

Levam sonhos deixam mágoas
ai rios do meu país
minha pátria à flor das águas
para onde vais? Ninguém diz.

Se o verde trevo desfolhas

pede notícias e diz
ao trevo de quatro folhas
que morro por meu país.

Pergunto à gente que passa
por que vai de olhos no chão.
Silêncio -- é tudo o que tem
quem vive na servidão.

Vi florir os verdes ramos
direitos e ao céu voltados.
E a quem gosta de ter amos
vi sempre os ombros curvados.

E o vento não me diz nada

ninguém diz nada de novo.
Vi minha pátria pregada
nos braços em cruz do povo.

Vi minha pátria na margem
dos rios que vão pró mar
como quem ama a viagem
mas tem sempre de ficar.

Vi navios a partir
(minha pátria à flor das águas)
vi minha pátria florir
(verdes folhas verdes mágoas).

Há quem te queira ignorada
e fale pátria em teu nome.
Eu vi-te crucificada
nos braços negros da fome.

E o vento não me diz nada
só o silêncio persiste.
Vi minha pátria parada
à beira de um rio triste.

Ninguém diz nada de novo
se notícias vou pedindo
nas mãos vazias do povo
vi minha pátria florindo.

E a noite cresce por dentro
dos homens do meu país.
Peço notícias ao vento
e o vento nada me diz.

Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.

Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não

Tinha de ser, a atitude não é de agora e antes que o agora comece a ficar como o dantes, ele tinha de tomar a atitude e tinha de ser agora. Com todo o ruído e ainda bem.

sábado, setembro 24, 2005

Alegre!

A 30 de Julho sabíamos que um homem não se rende. Hoje, sabemos que avança, larga as amarras do cálculo e faz-se à luta. Os tristes ficam tristes. Mas a alegria das convicções sorri. Agora é tempo de a fazer sorrir cada vez mais, numa imensa gargalhada. Pode mesmo ser alarve, um riso que mostre os dentes todos e que a voz saia grave lá do fundo, desse lugar recôndito de onde brota a verticalidade que não cabe nas sondagens.

quinta-feira, setembro 22, 2005

A nova lei

Pode-se fugir para se não ser preso. Pode-se voltar e ser solto. Pelo meio podemos candidatar-nos a um lugar público. Este é um país onde as mais amplas liberdades estão asseguradas. Mas, como dizia ontem um perito, isto não acontece a todos. Dá jeito ser o assunto mediático, porque se o não for, provavelmente vão-se passar uns dias à prisão até se ser libertado, reconhecendo assim as desigualdades dos cidadãos perante a Justiça. Mas quem se escandaliza com isso? Parece-me ser esta a diferença. Dantes era com algum pudor que encarávamos as diferenças, quase as encobríamos, era desconfortável a diferença de oportunidades; agora é com naturalidade que saudamos as desigualdades, contentes com a livre concorrência desregulada. Cada um por si, pois claro. E que vença o melhor!

quarta-feira, setembro 21, 2005

Sempre os mesmos culpados

É possível que tenha havido hoje um debate na Assembleia da República sobre questões importantes para o país e o seu futuro. Mas o que se ouviu foi a populaça saudar o regresso da Fátima Felgueiras e as mulheres dos militares a passearem o seu descontentamento com a perda de privilégios na rua. Portanto, só aconteceu o acessório, o folclore. A culpa é dos políticos, não é? Os jornalistas apenas promovem o que o público quer. Bolas, afinal a culpa é nossa...

terça-feira, setembro 20, 2005

Tempos

Há dias em que apetece seguir ao sabor do vento que sopra por dentro. Deixar ir, vela toda aberta com a curiosidade de ver onde se pára. Nem sei por que assim será, mas foi assim hoje. Procura sem programas. É este o tempo de qualidade que é preciso preservar e não o das rotinas que nos encurtam o tempo, nos limitam e fazem desaparecer no fumo dos dias.

segunda-feira, setembro 19, 2005

As voltas que isto dá

Mais uma vez adiado o enterro da Europa social, andam desesperados com a sorte os gurus do mercado anti-social. Depois da Noruega, agora foi a Alemanha que não aderiu (e tão bem encaminhada que a coisa estava!) ao futuro prometido do triunfo do liberalismo e do fim do Estado. O anarquismo de direita começa a bater com a cabeça no muro. Desta vez de Berlim, depois será noutros. Ainda há quem resista a viver sem olhar para o lado e reconheça que o fosso entre uns poucos e os cada vez mais não é para alargar.
Vai ser divertido ouvi-los a falar da ingovernabilidade e de outras catástrofes que se avizinham, perplexos. Como está a ser possível que a saudade de alguma esquerda comece a crescer? Há já muitos anos também eu tive a ilusão de que o caminho estava aberto e a estrada era em frente até à completa libertação. Afinal, tudo era mais complexo e, se calhar, a história está agora a repetir-se. Apenas noutro contexto.

domingo, setembro 18, 2005

Mais ou melhor

Mais centímetros, mais income, mais anos, mais tudo. E arrastamo-nos, escravizados por mais, sem nos preocuparmos com o melhor. Melhor exige reflexão, procura. Mais, apenas consumo. Pela tentação do mais, esquecemos a necessidade da busca do melhor. Será por isso que consumimos cada vez mais, mais antidepressivos?

sexta-feira, setembro 16, 2005

Lisboa vista de perto (sem cheiro)

A sensação é de inércia, de que já nada pode acontecer. Para mais, depois de ver o debate de ontem entre dois candidatos a Presidentes de Câmara, a sensação é de irrealidade também. Definitivamente, não votarei em nenhum dos dois.
Surpresa, só ver Lisboa em aproximação cada vez maior, mais e mais até ver a minha rua ou será mesmo o meu carro? Só estas coisas como o Googleearth valem a pena. Não se veem os candidatos.

quinta-feira, setembro 15, 2005

Comentar o comentário

Como aqui afirmei há dias, a pior das feras fica mansa quando a barriga está cheia. Por isso, ao anónimo comentador aqui deixo a resposta, na impossibilidade de o fazer doutra forma:
Há espirais de violência que não se acabam lançando gasolina na fogueira. Quem ateia o fogo é, para mim, o principal responsável. E os imperadores têm sempre tendência a não pedir desculpa. Já assim foi na Idade Média, na Inquisição e em todos os Vietnames que o meu interlocutor anónimo quiser considerar. Quando muito, as desculpas vêem envergonhadas alguns séculos depois. Mas o tempo hoje anda mais depressa… Tempos diferentes para agir, também, diferente.
E pronto, quando a pancadaria começa, todos são culpados. Todos os terroristas, incluindo os que lançaram a primeira pedra, se calhar por maioria de razão.

quarta-feira, setembro 14, 2005

Sua culpa

O Imperador já pediu desculpa por New Orleans, porque as sondagens lhe disseram que ficava bem pedir desculpa. No fundo continua a pensar que não demorará muito a ir tomar o café com o seu amigo Senador na varanda da sua nova casa.
Quando vai pedir desculpa pela intervenção no Iraque? Ou quem é o real culpado de tudo isto?

Défice

Concordo com o Dr. Soares quando o homem acha que o Prof Cavaco não tem perfil de PR. Realmente o homem é pelo menos tão inestético como o Ramalho Eanes. Fica mal a um país, é como um fato estreito a apertar-nos os ombros, não tem dimensão.
Cada vez precisamos mais de dimensão humanista, algum espaço para meditar além do défice. Isto é, ter estatura de gente. Precisamos de saber que na Noruega, o tal país mais rico do mundo, a esquerda ganhou porque as pessoas não querem o fim do Estado, porque sabem que o neoliberalismo não é o fim da história, porque se incomodam com os dispensáveis da sociedade. Porque isso não é estético. Precisamos saber que temos uma relação de rendimento entre ricos e pobres escandalosa e participação do trabalho no PIB ridícula. Precisamos que isso venha nos nossos jornais e revistas. Que se passa que agora dizem todos o mesmo? Antes de 74, ao menos tinhamos a noção que a República e o Diário de Lisboa nos diziam coisas diferentes dos outros. Nem que fosse pelo tamanho da bola negra que a censura lá punha. Mas agora, as notícias são iguais, mais ou menos com alinhamentos diferentes, mas as mesmas. O país tem um défice muito maior que o défice orçamental. De informação. E este não é corrigível com gente de Santa Comba ou de Boliqueime.

domingo, setembro 11, 2005

A data


A pior das feras fica simpática depois da barriga cheia... Estou, obviamente, a falar da data de hoje e não de outros acontecimentos mais recentes.Posted by Picasa

sexta-feira, setembro 09, 2005

Volta Manel!

A luta pela destruição do velho passado continua. Também aqui sempre mais fácil para os ricos que implodiram ontem as torres do passado. Mais difícil para mim que estou quase a explodir. A preparação do futuro é uma tarefa difícil. Mas a regeneração dá vida nova e novas esperanças.
Também lá fora continuam a destruir o Velho. Com pouca argumentação além dessa, mas lá vão publicando sondagens de vitória cavacal. Por momentos, parece-me que Soares tem os níveis de aceitação jornalística que tinha o Santana Lopes, o que mostra o estado a que Isto chegou. Esta pequena história é ingrata. Já se esqueceram que foi este homem que acabou com a revolução em 75, que meteu o socialismo na gaveta e fez muitas outras diabruras que tais. E ainda passou tão pouco tempo... Ou estarão a preparar-se para comentar os futuros banquetes de jaquinzinhos e bolo rei no palácio de Belém? E uma primeira dama a desviar cobertores em aviões? Grande caixa, boas vendas!
Esta coisa está preta. Por isso termino com um provérbio africano: «Um homem velho sentado consegue ver muito mais além do que um jovem no cimo de uma árvore».
Volta Manel, que isto está triste.

quinta-feira, setembro 08, 2005

A preparar o terreno

Há uma ligação patológica aos objectos que nos paralisa na altura da sua destruição. Temos receio de virmos a necessitar invariavelmente daquilo que não usamos durante anos. É um comportamento absolutamente irracional, mas não percebo por que não deito fora os artigos de há 10 anos, a esfinge de plástico pintada da cor do bronze, a Exame Informática de há seis ou sete anos. Mas não será criando novo espaço para o lixo que dele me livro. Ando um dia inteiro neste dilema, esquecendo-me que, com os diabos, ainda estou de férias. Acumulei pilhas de artigos de revistas, de livros, tenho um ardor de pó na garganta.
Enquanto me lembrar vou ser selectivo nos papéis que me invadem a casa todos os dias. Terei de ter menos medo. Mas, mesmo no meio do lixo, surge algo que me faz recear o radicalismo de implodir todos estes anos de papel acumulados. Uma citação de Aristóteles: «We need relaxation for we cannot work constantly. We need amusements and recreation to restore, to recreate ourselves for our occupation. But the goal of being occupied should only be to obtain leisure». Tinha sido um desperdício ter deitado isto fora sem dar conta, por isso destruir anos de lixo tem de ser uma actividade cautelosa. Limpar a mata dá trabalho, mas pode evitar os fogos.

terça-feira, setembro 06, 2005

Serenidade

Acho que era em Lucerna que havia um comboio-brinquedo gigante que andava numa montanha sobre uma linha com passagens de nível, passando ao lado de rebanhos equilibrados nas montanhas cheias de chalés suiços. Lembrei-me agora dele, ao olhar para a rua onde vejo automóveis que avançam calmos e param no sinal vermelho numa desaceleração quase perfeita, que dá lugar, logo de seguida, ao avanço do eléctrico que ronca sobre os carris num ronronar sossegado. Tudo sem pressa, parecendo comandado por algo que se não vê. Uma nova versão revista e melhorada do Hakuna matata.
Também o congresso decorre sem sobressaltos, excepto os meus. Nada justifica que se perca a oportunidade de encontrar os resultados que ainda não existem. É um auto-desafio com cumprimento exigível até ao fim do ano.

domingo, setembro 04, 2005

Em Gotemburgo

Cheguei aqui ontem e rapidamente fiquei com a sensação enorme de uma grande viagem pelo tempo. É ter sorte passar em poucas horas do primitivismo ao que poderá ser o exemplo de civilização mais avançada deste planeta. Respira-se a ausência de ansiedade, a segurança constante, a organização serena em tudo. Na cara das pessoas, hoje à tarde na feira Popular da terra, alguns sorrisos serenos e, se calhar por isso, menos intensos, sorrisos sem o nervoso gerador do gozo, sem a alarvice do costume. Assépticos, mas nem por isso menos interessantes. Falta-lhes a esperança, talvez. Mas a esperança é um arrepio que as garantias não permitem. A esperança só é possível quando algo ainda se não tem e a sensação com que fico é que têm tudo o que precisam. Felizes? Não sei! Se calhar a felicidade exige alguma incerteza no futuro e menos certezas. Há, em certa medida, o espaço da savana e a tranquilidade do leão depois do repasto, barriga cheia, que há dias andei a ver nesse encantamento de paisagem sossegada, onde se mata por necessidade e equilíbrio, sem perversão. Os animais selvagens ensinam-nos essas virtudes e mostram-nos dimensões que bem queria ver noutros civilizados.
No isolamento de mundo em que andei nem notícias tive do furacão de New Orleans. Vejo agora a América que eu sei que existe. Help! Help! Help! Um grito repetido, doloroso, que se entranha em nós. Estive ali naquela ponte caída, naquele Centro de Congressos, naquela avenida do hotel W, passei por Atchafalaia e já chovia, chovia muito naqueles dias em que lá estive. Como estará o Café du Monde? O homem do saxofone voltará a tocar? E o Jazz Preservation Hall, terá sido desta vez que morreu? Só vejo nestas imagens a dor, que alguma inconsequência não soube evitar. A tal América que eu sei que existe. A tal que não é exemplo para nada, apesar de o reclamar e exportar, mundo fora, um modelo vazio de acentuação de desigualdade crescente e perversa, selvagem, direi mesmo. Está tudo descrito, como um fado, no Futuro do Sucesso de Robert Reich que também vou lendo nestes dias. Quando iremos acordar? Que nos despertará?
Talvez as lições da selva onde se aguçam os sentidos na busca da sobrevivência, só, nessa função de grande dignidade. Ao menos os búfalos cheiram os leões, percebem-nos na vizinhança e sabem unir-se em grande manada e os leões vão esconder-se mais à frente. Mas a manada sabe unir-se e avançar segura contornando o predador.
O safari continua a povoar-me de ensinamentos. As imagens do espaço longo continuam a acompanhar-me. Vou deixar aqui mais uns momentos que por lá registei, dia 26 de Agosto, na espera de voltar a ter um acesso, que agora chegou em Gotemburgo:

Nota: Escrito depois do desastre que comprometeu a visão do texto no computador, num clima de sentimento de negligência e irritação com a história. Embora já aliviado por ter a sensação de outras negligências bem mais complicadas pelas quais não me lembro de ter passado. De qualquer forma, vou escrever com alguma raiva pelo sucedido.

De pouco vale, estar-se num ambiente acolhedor, na beira da piscina numa tarde de clima ameno se soubermos que é perigoso passarmos a porta que nos levaria à rua e ao deambular pela cidade. Mas desde o primeiro instante, quando nos trancam a porta do shutle, que se fica com a noção de que assim vai ser. Nairobi é, dizia-se no Lonely Planet uma cidade perigosa, com pequenas áreas de alguma segurança. Tudo aqui o confirma, quando, por exemplo, o porteiro nos diz que só será seguro ir até ao Banco de táxi… O que restou foi ficar prisioneiro na beira da piscina, à espera de libertação matinal para zonas mais recônditas, onde os males das cidades se façam sentir menos.

Depois de um despertar entusiástico pelas seis da manhã, começámos por aguardar a chegada do jeep, que, claro, tinha ido esperar-nos ao Nairobi Safari Club…
Com algum atraso, sempre recuperável quando se está de férias ( e se calhar todos os atrasos são recuperáveis, porque, verdadeiramente, só a morte o não é e essa todos achamos que nunca chega atrasada) lá fomos saindo de Nairobi, com trânsito meio caótico na outra faixa da auto-estrada, observando a maior densidade que já tinha visto de carrinhas de oito lugares, aqui chamadas matatus e que, na verdade, são uma espécie de táxis. Quase se poderia dizer que esta é a cidade onde mais se anda de táxi. Faltam os transportes públicos. A alternativa parece ser a de táxi ou a pé. Como na véspera já tinha notado, anda por aqui muita gente a trabalhar para a linha, em marcha rápida.
Na nossa ignorância, perguntamos ao Charles (o guia) se iríamos ver animais pelo caminho. Não, senhor, até Samburu, apenas iríamos ver pessoas. E assim foi acontecendo. Sempre na beira da estrada, gente a pé, uns sozinhos outros acompanhados por molhos à costas, ou as mais variadas cargas transportadas sobre bicicletas que vão sendo empurradas à mão. Quanto mais penetramos para Norte, mais surgem na beira da estrada crianças que nos acenam como há muitos anos se fazia nas aldeias em Portugal.
Com o habitual pretexto do descanso e da satisfação de algumas necessidades despertadas pelas necessidades que o tempo de caminho vai gerando, parámos numa Curio Shop, curioso nome como aqui se designam as lojas de vendas de bugigangas artesanais. Lá nos submetemos a uma sessão de bolsa com cotações de venda surreais e ofertas de compra indecentes, num jogo, por vezes, ridículo que pode fazer-nos pensar nos mecanismos da geração do preço de uma mercadoria. Não há modelo matemático, aqui se percebe que é pura especulação entre oferta e procura, uma luta de emoções, mais do que de razões ou reais custos. Desta vez até tivemos intervenção imperialista na discussão. Dois soldados ingleses que aqui se encontram em treino militar (fico a pensar se estarão realmente a preparar-se para defender a pátria, pois as condições de terreno que aqui verifico não me fazem lembrar muito a Grã-Bretanha) decidem informar-me que o preço que me pedem é ridículo. Fico na conversa com o vendedor, atemorizado, que o colonialismo já passou por aqui e ele vai-me dizendo, que já os expulsaram, mas que os gajos têm a mania e eu confirmo, que os tipos são imperialistas, que foi incrível a intervenção que os soldados ali tiveram na defesa do ocidental contra o infiel (leia-se explorado). Não fizemos negócio, mas solidarizamo-nos, a nossa discordância não deu guerra e terminamos com um Hakuna matata, se calhar convencidos, um e outro, que poderíamos ter ido mais longe.
Continuámos, até sermos, finalmente parados por uma operação stop, prática muito frequente por estas bandas ao que parece que na busca de armas. Depois ninguém revista coisa nenhuma e tudo segue. Hakuna matata.
O caminho continua com a observação frequente de múltiplas escolas junto à estrada, plantações de café e de fruta para conserva. Mais além, na vizinhança do Monte Quénia, surgem as grandes quintas de trigo à maneira de Out of Africa. Os restos do Império ainda presentes.
Numa segunda paragem numa Curio lá chegamos a um acordo só possível depois de oferta de uma caneta e umas tentativas de câmbio de dólares, euros e shillings quenianos…
A fase final do percurso até Samburu é uma penosa picada de terra batida (ou de costas batidas pelo jeep) que dura cerca de uma hora.
Entrada a reserva, pouco à frente surgem os primeiros elefantes para algum desespero do Charles, que já tinha visto bastantes. Mas acabamos por chegar a boa hora para almoço.
A Samburu Lodge é uma estalagem inspirada em bom gosto imperialista, com várias cabines isoladas ou em faixa junto a um rio, onde loco começámos por ver crocodilos e pouco depois mais elefantes e girafas. Isto ainda se vai tornar monótono… Mas não, depois do almoço, trilho fora, no jeep agora descoberto para podermos caçar melhor o que nos rodeia. Rapidamente, surgem gazelas, órixes, mais elefantes, antílopes elegantemente vestidos e galinhas da Guiné, que devidamente registamos. Numa pequena depressão da estrada o jeep engasga e vai abaixo por bateria fraca. A recarga surge rápida. Outro jeep aproxima-se pela frente, encosta para-choques no nosso e começa a empurrar. De súbito, o motor funciona provando uma vez mais que hakuna matata. E continuamos a caçada. Até ao fim do dia, ainda tivemos, leões, leopardo na árvore e no chão e búfalos. Pronto, já cá estão quatro dos big five. Isto está a render. A caçada destes últimos é feita com a ajuda dos rádios dos carros de turistas. A coisa começa quando alguém avista um destes bichos, depois faz-se uma chamada e cercam-se os ditos. Os cliques das máquinas não param. Apesar do gosto que isto me dá, depois de estar frente a um elefante ou um leopardo, imagino a sensação que terá dado em tempos a outros, carregar no gatilho em vez do disparador da máquina. Agora, percebo que este safari não passará de uma espécie de masturbação da caça. Acho que nestes instantes se percebe Hemingway ou mesmo o Miguel Sousa Tavares…
Há, ainda assim, o gozo da descoberta do animal, a escolha da pose quando possível e chega-se ao fim do dia com o corpo moído como já não sentia há muito dias e nem os macacos a miar nas árvores me impediram de rapidamente cair no sono. Ajudou o calor do início da noite, que às quatro e meia já não era assim tanto e acordei. O jogo ia continuar.

A manhã começa com a descoberta de zebras, além de uns agora desprezíveis elefantes, gazelas e outros que tais vistos na véspera. Mas sobretudo há a luz fresca do amanhecer, uma suave brisa no mato. Até que chega o momento da chita e das suas crias que, de um dos lados da estrada, olham, gulosas, os órixes, do outro. Fica-se por ali um pouco e sente-se que o grande momento já não é a descoberta do bicho, nem a contemplação das suas poses, mas o sonho de realização do Discovery Chanel. Quer-se caça, sangue, espectáculo selvagem. É curiosa a estética humana.

Depois dos animais e das frustrações (?) que nos causam, passamos ao número seguinte, a visita a uma aldeia Samburu. A coisa é um pouco folclórica, cheira a alguma falsidade, mas é ainda assim, reveladora deste mundo estranho em que estamos. Hoje, dia 26 de Agosto de 2005, no planeta terra ainda há quem faça fogo com dois paus, seja nómada, tenha por habitação coberta de bosta de vaca, formada por três cubículos menores que qualquer cozinha de prédio novo, onde habitam homem, mulher e filhos (além de uma pequena cabra, claro).
Começa-se depois o caminho inverso, mas durante mais de meia hora todos permanecemos calados.

A continuação do circuito é feita para Abardares, onde se almoça no Club de Golf. Aqui se entrega a bagagem para depois se partir de autocarro para The Ark, uma zona inesperada, em que subitamente se deixa o quase deserto e se penetra numa floresta densa. Floresta tropical de repente em África. Chega-se à estalagem The Ark e tem-se um briefing com todos os ingredientes de americanada. Nem as piadas giríssimas faltaram. Tem programa de alimentação de pássaros, chá, proibição do tabaco, obviamente, e promessas de toda a selva.
A estalagem tem quartos para ficar acordado a noite inteira. É por isso que não estão aquecidos (e está frio!) e a casa de banho é daquelas em que se não consegue cortar as unhas. Frente à estalagem há um lago. Nas margens do lago deitam sal, uma ideia que além de ser possivelmente geradora de hipertensão na bicharada (que adoram o sal, mais do que os portugueses bacalhau), lhes vai criando uma dependência. E é ver, dos três níveis de balcões, elefantes e búfalos, à vez, subirem ao palco. Através do vidro ou de uma guarita vê-se uma narração cénica tipo Manoel de Oliveira, com animais que se mexem vagarosamente de um lado para o outro, com algumas marradas e promessas de sexo. De tempos a tempos, entra em cena algum pequeno animal que cruza o palco de ponta a ponta. Nesta actividade, apesar de tudo repousante, os espectadores permanecem em silêncio conforme solicitado (salvo alguns espanhóis que se enganaram e ficaram na plateia em vez de subirem também ao palco). E a cena repete-se noite fora, iluminada por holofotes para encandeamento de animais, escravizados pela dependência do sal, sendo que quem quiser pode ficar de chamada. Tocam uma buzina se chegar algum dos bichos raros… Walt Disney produções nesta África com surpresas. Umas boas outras assim. Já passa da meia-noite, vou espreitar…


Depois disto houve o Lago Nakuru com as margens pintadas côr de rosa pelos flamingos equilibristas, dos espaços sem lime, os rinocerontes pachorrentos e Masai Mara dos caminhos sem fim, dos espaços sem limite. As carcaças feitas de noite para o alimento matinal dos leões e filhotes e dos abutres necrófagos. Os hipopótamos estacionados no rio Mara que os gnus recusam atravessar provavelmente por um receio meio inconsciente dos dentes de crocodilos. Houve a África grande do pôr do sol e da luz clara da manhã. Agora que já estou Out of Africa, algo dela me entranha e lembro-me de ter pensado que teria feito um poder como o de Cuba num país com os recursos que tem o Quénia. E a liberdade adquire alguns significados menos convencionais.
E eu que tenho esperança ainda acredito em alvoradas de luz, com a frescura que quero inspirar toda de uma vez, num acto de purificação apetecido.