Há cidades de que só gostei na primeira vez que as vi. Outras há que é possível redescobrir cada vez que lá vou, encontrar-lhes novos sentidos e senti-las de forma nova em cada visita. Nova Iorque começou por ser uma cidade aceite com reservas, de duvidoso interesse. Foi a fase do postal ilustrado conhecido, do preconceito que sempre se associa ao desconhecimento. Foi assim na altura em que tinha um ar de triunfo do sistema e na altura do martírio das torres. Foi já na última vez que lá estive que percebi que é uma cidade onde tem de se voltar para se experimentar de novas maneiras.
Agora, com os museus conhecidos, mesmo os renovados e sem que houvesse alguma exposição temporária marcante nesta altura, foi possível visitá-la sem programa.
Pragmaticamente, desta vez, começou por servir para ir às compras. Longe das loucuras da 5th Avenue, no Outlet da periferia, onde as promessas eram muitas. A viagem de camioneta demora cerca de uma hora e um quarto. Como é frequente acontecer, é importante não desprezar o instante da viagem sacrificando-o à ideia do objectivo. Neste início de Primavera já avançada, ainda são ressonâncias outonais o que me foi dado ver nas árvores desfolhadas. O objectivo prometido, meio mítico, soube-me ao Campera ou ao FreePort. É duvidoso o valor do bilhete do transporte, apesar das poupanças dos artigos comprados, porque se gasta um dia. Mas, desta vez, os dias também não estavam tão contados. Por pouco, as filas do regresso impediam um fim de dia na calma da música de Emílio Santiago servida no Birdland. Valeu a eficácia dos táxis que permitiram ir despejar a tralha ao hotel e chegar uns minutos antes do começo do espectáculo.
O segundo dia começou com a romagem ao Ground Zero, local de mistérios possivelmente por esclarecer, agora a renascer no aço e no betão. A St Paul Chapel salva, em dia de fúria árabe, por uma figueira-do-egipto é agora um monumento de romagem ao naineelevene, cheia de homenagens aos heróis do bem e lembranças dos espíritos do mal. Mas não só as árvores providenciais ou a intervenção divina actuaram na zona, deve também ter sido fruto da acção de uma qualquer mão invisível a salvação do Century 21, onde no meio do lixo sempre se encontra alguma coisa que vale a deslocação, fazendo sentir, que muitas vezes o lugar certo está mesmo perto de nós e não é aquele local distante onde ainda não chegámos. Já libertados das compras, na rua, pude assistir à estratégia de implementação do pleno emprego em tempos de crise: 3-funcionários-3, ajudam os peões a atravessar numa passadeira...
[Filme a estrear em breve neste local]
O shopping cansa e justifica um estágio de preparação para o jazz da noite no Bluenote, onde estava Michel Camilo ao piano, em dia de festa de anos.
O day after começou num resto de compras na Uptown. Breve desta vez, mas suficiente para perceber alguma depressão nos sorrisos mais escassos das empregadas das lojas, certamente porque a crise também deve andar por aí a baixar os proveitos e a ameaçar a ida para casa. Até na rua os sem-casa (as pessoas precisam de casa não apenas de abrigo) são mais frequentes que na última passagem por cá. De resto, está igual, sempre fumegante do chão e com os cafés transportados na mão enquanto se corre para algum lado, com os mesmos ténis que se substituem por sapatos na entrada do emprego. Só as flores surpreendem pela positiva desta vez em que a visito antes do Verão. A 5th Avenida continua a ser um filme passado em ritmo acelerado com milhares de pontos agitados na entropia habitual. Depois de uma manhã assim, sabe bem apanhar o metro e ressurgir do outro lado do rio East, em Brooklin. As lojas da Fulton Mall têm um ar mais à maneira do Martim Moniz, mantendo a mesma agitação de Manhatan. Em minutos as pessoas mudaram de cor e aumentaram de peso, abanam enormes rabos pelas ruas. Caminhando em direcção ao rio, reaparece uma calma nova por entre a zona residencial e encontra-se gente que repousa em bancos de jardim virados para Manhatan, que vista daqui tem uma tranquilidade inesperada, só perturbada por algum helicóptero aqui e além. O passeio acaba no The River Café, quase por baixo da ponte de Brooklin, com Manhatan nos olhos, árias de Ópera nos ouvidos e na boca, degustação de queijos acompanhada de Riesling. O sol descia sobre a grande cidade, alaranjando os ares num fim de tarde morno e gostoso. Tão bem se estava que se esticou o tempo e foi já com alguma ansiedade de chegar atrasado que avançámos para o compromisso musical que tinha sido a causa principal desta deslocação. No Harvey Theatre, de tijolo à vista e colunas metálicas corroídas pelo tempo e pela falta de subsídios certamente, assistimos, no palco, à Paixão Segundo São Mateus, executada por uma orquestra da Academia de Brooklin disposta num círculo no meio do qual evoluía o coro. Sem formalismos de vestuário, em ar de ensaio, pelo exclusivo prazer da música de Bach.
Neste dia 25 de Abril que desde há 35 anos é um dia especial e para sempre como diz o slogan, a deambulação começou na Village onde, passados os cachorros atrelados a alguns seres mais ou menos exóticos, voltámos a não poder ir ao Chumley's, onde a pressa já nos não tinha feito entrar da última vez. Também desta lá não fomos, porque tinha sido fechado (pela ASAE do sítio?). Moral da história, nunca perder uma oportunidade no presente, porque o futuro é sempre incerto. A alternativa morou perto no Pink Tea Cup. A comida do Sul e Obama presente na decoração.
Pelas ruelas da Village ainda foi possível passar noutro local igual a tantos outros por onde se pode andar, mas muito raro, porque celebra a coisa comum e não a excepção. Devidamente assinalado com placa e tudo.
À tarde enquanto se faz tempo para o Trovador, anda-se por Central Park salpicado de nova-iorquinos estendidos em piqueniques pela relva, à maneira dos pontos de Seurat. Imagens de antes e agora, reveladoras de que os gostos das gentes não mudaram assim tanto e que a verdadeira vida, a da Street, pouco terá que ver com a apregoada como modelo na Wall Street, uns quarteirões abaixo.
Ao Domingo é dia de brunch com Jazz band de novo no Blue Note. Foi um domingo de calor para passear a pé, no pós-brunch, na visão de mais Seurat vivo junto a Battery Park. Ainda uma nova revisão do grande buraco a renascer antes de ir até South Street Sea Port e acabar na East Village, numa deslocação intencional para visitar, na 7th Street, a MacSorley's, que nasceu 100 anos antes de eu nascer e que se mantém jovem na tradição das duas canecas de cada vez, que uma só deixa a garganta seca na tarde de Verão antecipado na Town. Aqui a serradura anda no chão e as gargalhadas no ar. No ar, pendurados continuam igualmente os wishbones, que os soldados há já muito tempo não vieram buscar. Cobertos de pó sobre o balcão. A história foi-nos contada por uns canadianos que por lá estavam também e é assim: antes de partirem para a guerra os soldados iam ali depositar uns pequenos ossos de frango. Na volta, passavam a retirá-los... os que regressavam. Dos outros sobram aqui os ossos de frango e os deles em Arlingtons por aí. São as pequenas histórias dos lugares grandes que valem a pena.
Acabou o dia no teatro Orpheu, sob o ruído e graça dos Stomp na descoberta do som do lixo reinventado. Ou de como a matéria só existe pelo trabalho do espírito.
Chegados ao último dia, cumprimos a quase tradição de ir a Harlem e ao Sylvia's para saborear a comida do Sul. Era segunda-feira, não havia Gospel, mas foram suficientes os paladares da Louisiana.
À partida sente-se o receio da gripe e a incerteza dos próximos tempos nos alarmes da imprensa ávida de vender e continua a estar presente o desejo de voltar. See (ny)ou soon.
Já no JFK, a imagem muitas vezes vista na cidade, nos cafés e nas ruas. Ao fim de 100 dias tudo está tranquilo e as t-shirts vendem-se bem. Até quando?
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