Não tenho dúvidas que se não fosse ela, estas férias teriam sido diferentes. Desde o momento em que a vi recentemente, percebi que tinha de lá voltar. Por ela me decidi ir até ao Porto nesta época em que a chuva e o frio já ameaçam. Nesta altura ela enche o Porto, por onde passasse ela estava presente e assim me acompanhou os dias mesmo antes de a voltar a ver.
Já não sei quantas vezes tinha ido ao Porto sempre a reuniões. Até agora, o Porto era para mim um hotel na Boavista e um percurso da estação de Campanhã até lá e volta. Pelo meio havia uma excursão a Gaia para ouvir uma funcionária de uma das Caves explicar-me o processo de fabrico do Vinho do Porto e os vintages. O Porto era assim uma coisa estranha, muito vista e nada percebida. Desta vez, por causa dela, tudo foi diferente.
Comecei a visita pela Bolsa, que afinal o não terá sido muito. Prenda de reis em decadência a uma Associação de Comércio em ascensão, que ergueram das ruínas de guerras civis, um edifício evocador do seu bem-estar. Passada a Sala das Nações logo à entrada e subidas as escadas de acesso ao primeiro andar, vimos o Tribunal do Comércio, a sala de reuniões da Associação do Comércio do Porto e a visita vem a acabar com o Salão Árabe, um mergulho nas Mil e Uma Noites, de um sonho de rainha de tempos em que afinal os árabes não eram assim tão terroristas. Já chovia quando saímos e passámos pelo Mercado Ferreira Borges onde os periquitos se preparavam para serem expostos. Pela Rua das Flores ainda vimos algumas das casas de outrora, mas agora sem vestígios de flores, substituídas que estão pelas bandeiras esfarrapadas de Portugal (ou será da selecção) devidamente acompanhadas pelas do FCP. Quase sem dar conta já estávamos na Torre dos Clérigos. No reconhecimento que só os passeios a pé permitem fazer das cidades, avançámos para a maravilha da Livraria Lello, com paragem para chá no primeiro andar e depois até aos Aliados e sucessivamente, para o Café Guarani com telas da Graça Morais, para o Mercado do Bolhão e Rua de Santa Catarina antes de chegarmos à Sé, à porta da qual um bloco de granito caiu nem se sabe bem como. Depois de um breve passeio pelo interior onde na tarde se casava gente do norte, descemos encosta abaixo serpenteando pela Ribeira até ao ponto de partida. Pronto, estava feito um grande U, que depois mais tarde se pode contemplar do outro lado, de Gaia, não, sem antes, provar uma francesinha no Uma velha tinha um gato, um nome que só no Porto poderia ser identificação de café-bar. A farncesinha lá se comeu por entre remorsos calóricos.
O primeiro dia de visita acabou com a ida para o hotel em Gaia, onde nos esperava um quarto no 20º andar com vistas para qualquer tão indefinida que poderia certamente ser uma cidade qualquer americana cheia de luzes e néon. Mas não era, aqui era Gaia igual a tantas outras, um grandioso armazém do Porto que do hotel se não avista. Daqui só mesmo o Gaia Shopping, com torres de néon. E nada disto teria percebido se não fosse ela.
No segundo dia de estada na cidade repetimos a dose de Porto depois de uma descida para o abismo desde o tabuleiro superior da Ponte D Luiz até ao rio por uma vereda à direita de quem vai até ao rio vindo de Gaia. Depois uma épica subida dos mais de 200 degraus da torre dos Clérigos e nova passagem pelas ruelas da Ribeira, com roupa e cachecóis do FCP estendidos das janelas, em descida lenta até ao D. Tonho, onde nos esperavam bacalhaus em várias confecções. Era então hora de descobrir a ligação ao outro Porto, o da Boavista, e fomos à procura passando ao longo da margem direita, rio abaixo, até à foz e ao Castelo do queijo, com viragem de reentrada pela Avenida da Boavista, num Porto novo, encorpado, mas sem o sabor de vintage da Ribeira. Um Porto sans noblesse (snob), cheio de sinais exteriores de riqueza, tantas vezes associado a algum vazio de interior. Plástico. É do outro que gosto e foi para vê-lo em conjunto e à noite que valeu a pena ir ao Cais de Gaia, um bom miradouro do Porto fino e puro dentro do U que conheci nestes dois dias. E tudo por causa dela.
Ao terceiro dia, dentro da Fnac do Gaia Shopping, era o tempo e o espaço de esperar pelo comboio em que a Sofia vinha. Uma boa loja, onde se passeia devagar o desejo de consumo numa manhã de feriado enquanto o comboio não chega.
E lá chegou e fomos até ao Cais ver o U do Porto e alarvar no Tromba Rija, onde já tinha acrescentado os depósitos de gordura há algum tempo atrás. Impróprio para quem faz dieta, óptimo para quem gosta de comer. Uma boa visão antes de zarpar até às terras frias da fronteira entre Minho e Trás-os-Montes. Estalagem do Morgado, um local onde o silêncio tem voz na chegada, quase à noite. Sente-se o frio da terra na visão do lago da barragem e enche-se o tempo sentado na poltronas do vestíbulo enquanto se devoram títulos de revistas, dispostas sobre a mesa. O almoço ainda actuante afasta-nos a tentação do jantar. Não acredito muito, que aqui tivesse vindo parar se não fosse ela. Assim, tive o prazer imenso do silêncio.
O quarto dia (2 de Novembro) cedo com a tenebrosa visão da CNN. Bush ganhava de forma indesculpável as eleições nos EUA. Uma América cheia de medo recusava-se a ter esperança. Se isto fosse apenas um problema deles, até acho que era bem feito. Que comessem do que gostam. O problema é que se calhar não será bem assim. Mas disto ela não tem culpa nenhuma. Isto foi um epifenómeno na história destas férias.
Por causa dela, hoje fomos fazer um circuito pelo Gerês. Fruto de um engano inicial, daqueles em que devíamos virar à esquerda e seguimos pela direita, acabámos em Pitões das Júnias em busca de um mosteiro. No fim de uma calçada de pedra, uma seta de madeira apontava o caminho a 300 metros. Andados 100, um entroncamento, um caminho para cima e outro para baixo, duas marcas, amarela e vermelha, numa pedra em frente. O problema dos caminhos para baixo é a subida que sempre implicam, pior é o prognóstico quando serpenteiam monte abaixo e se não lhes vê o fim, nem o objectivo que nos move. Neste caso era o Mosteiro. Mas lá fomos com a probabilidade de 50% garantida. Ao fim de algum desnível, ouve-se a água no rio e avista-se o granito do Mosteiro. Abandonado, a porta fechada, ninguém. Ainda o resto de um claustro e de uma provável cozinha. Pelo buraco da fechadura ainda se pode espreitar a Santa no altar.
Curiosamente, o caminho de volta, a subir, pareceu mais curto. Era a primeira vez que subir me parecia mais curto que a descida de igual tamanho. Percebi nesse momento que é a incerteza que torna o caminho longo. Sabe bem saber o que nos espera, mas parece que há quem goste mais das emoções da adrenalina. Garantia ou iniciativa privada, adrenalina para cansar os sentidos. É claro que prefiro a primeira via. Mas hoje, lá longe, foi a outra que ganhou.
Depois saímos pela Galiza e logo se notam as diferenças das casas e das estradas até entrarmos em Castro Laboreiro, um Gerês onde nunca tinha estado e onde, desta vez cheguei por causa dela. Lamas de Mouro era um destino com promessas de Outono vegetal em folhas castanho-avermelhado. Algumas, sim, mas nada sem impressionar. Alguma melhoria na descida para Soajo com visões de jovens mulheres carregando molhos de lenha. O que as fez ficar por aqui? O mesmo, que noutra dimensão, nos vai fazendo ficar, nesta limitação absurda de pertencermos a um país só pela circunstância de aqui nos terem parido. As montanhas que as envolvem, lhes tolhem os horizontes e lhes asfixiam a vida ainda pesam nos dias em que falamos de globalização. Para quando globalizarmos em vez de sermos globalizados? Continuo pela paleta de tons de Outono dos abetos, carvalhos, castanheiros e fetos até chegar a Soajo em busca de espigueiros de outro século na eira que era comunitária. Aí, imagino escamisadas, cânticos e espigas vermelhas.
Continuo o circuito até à fronteira de Lindoso e de novo em Espanha (ou na Galiza?). Que mania esta a dos países e nações, qual a diferença que faz estar do lado de cá ou do de lá? Mais à frente reentro pela Portela do Homem para o verdadeiro festival do Outono ainda que perturbado por uma chuva progressivamente mais intensa, que nos faz parar nas Caldas do Gerês, onde, a custo, lá nos serviram um chá, sem torradas. Já imaginaram a ciência de fazer uma torrada, numa tarde chuvosa de um dia de semana? Meu país pequeno...
Lembrava-me então de um Mosteiro, à beira do qual se comia. Isso me levou a São Bento da Porta Aberta. Mas, não, a memória não condizia com a visão em directo. Apenas a certeza de aqui não ser.
Voltei atrás e subitamente uma placa despertou a memória. Abadia. Uma só palavra, despertou todas as certezas, era lá! De imediato, as secreções salivares foram despertadas no entusiasmo de ser desta que lá chegaria. Cheguei, mas a escuridão do edifício era de mau prognóstico. E foi. Jantares só por encomenda e à segunda e terça é dia de descanso do pessoal. Regressei com a satisfação da redescoberta e vingamos a frustração na Pousada de São Bento com bacalhau com broa e rojões com sarrabulho acabados com pudim de abade de Priscos e companhia sortida de outros doces. Dias não são dias. Jantei, certamente, melhor que o George W que a esta hora faz o seu discurso de vitória. Resisto à indigestão da ideia.
Com os olhos satisfeitos de Outono, hoje é dia de regressar ao Porto por causa dela. Finalmente, Serralves e a visita que motivou estes dias. Ela, ali está em exposição até Janeiro. Passeio uma vez mais pela inquietação desta mulher e saio mais uma vez inquieto também. Afinal, ela tinha sido a causa de tudo isto.
Faltava o Majestic para o Porto estar completo. Foi lá que fomos desfrutar toalhas de linho nas mesas e um serviço de escola. Francesinhas fotogénicas e arroz de marisco mais banal preencheram alguns espaços vazios a esta hora já tardia. Uma boa experiência antes do regresso a Lisboa para uma paragem breve antes da descida ao Algarve. De uma ponta a outra este país num só dia. País pequenino...
O resto dos dias foram passados na surpresa do betão crescente no Algarve, com ar solarengo em Novembro, mais aproveitado por estrangeiros que portugueses. De tal forma que sentados num restaurante, logo nos saúdam com um hello! e nos oferecem cardápios em inglês. Depois, são toscos. Perguntamos que vinho têm e a resposta sai espontânea: Branco e tinto! Há 1800 restaurantes em Albufeira, a informação foi da senhora do Posto de turismo. Não sei se será verdade, mas até me custa a crer. Meu país de estalajadeiros!
Portimão é mais betão e os restaurantes agora são ao lado da ponte. Continua a cheirar a sardinha, a música está na rua. Forte e feio, foi um bom lugar para a cataplana de tamboril com digestão feita numa esplanada a mirar o rio e a ler uma entrevista de João Lobo Antunes, para sentir a diferença que alguns fazem. Ele foi aonde há iguais, mas mesmo assim voltou. Porquê?
Lagos está igual ou assim me pareceu antes de um pôr do sol na praia para os lados de D. Ana.
No dia do regresso ainda uma passagem por Sagres, naquele espaço de silêncio das ondas furiosas na falésia com pescadores pendurados, na espera do peixe que se nega. Bom início de tarde antes de começar a subir a Costa Vicentina até Aljezur com passagem pela fortaleza da Arrifana, com restaurante fechado e vistas largas e bem abertas sobre o oceano.
Mais logo, uma merenda ao pôr do sol, na Comporta (Ilha do Arroz) antes de sobreviver às melgas que atacam furiosas nesta hora junto ao ferry.
Uma semana de paisagens transformadas. Parece que de alguma maneira redescobri paisagens com ressonâncias antigas e diferentes. Uma modernidade snob quase sempre numa terra de vendilhões de serviços com estradas rápidas para chegarmos ao Centro Comercial (melhor dito, Shopping Center). O resto são cais de armazém com vidros partidos, barcos estacionados, fábricas abandonadas. È um país vestido de Inverno em tempo de Outono. Ainda haverá esperança de Primavera?