A habituação acaba por levar à normalidade. Começa a ser tão constante a divulgação da tragédia, que ela se torna cada vez mais normal, quase necessária ao bem(?)-estar. Uma boa notícia não deixa de ser vista com desconfiança, ou, se o não for, pelo menos com a impressão da sua inutilidade. É o que se chama uma não-notícia. Apenas a calamidade é notícia, porque a isso nos habituámos(aram). A imposição do instante real, apaga o sonho do projecto e ficamos sem rumo. Sem objectivos não se anda ou limitamo-nos a ir andando, que é a forma mais absoluta de estarmos para(lisa)dos, isto é, para destruição (lise).
Tive a sorte de passar por períodos de grande sonho. O sonho da Igualdade (iniciado em França no século XVIII, aprofundado em 1917 e ainda presente pelos anos 60-70 fora num período de adolescência privilegiada) e o da Liberdade (entreaberto em Abril de 74). Nos anos 60 era um puto rodeado de esperanças, que culminaram no proibido proibir de 68. E os telejornais, cheios das realizações do Regime, ainda assim, eram optimistas. Aos medos que havia, resistíamos, por haver valores mais importantes que tudo, até do que a vida. Se nos mandavam para uma guerra idiota, emigrávamos, fintando os lobos, mas não encarneirávamos. Se nos tentavam calar, gritávamos. Mas resistia-se sempre.
São diferentes os tempos de agora. Passámos a viver a um prazo muito curto e sem garantias (tradicionalmente endividados), com o problema de termos de sobreviver cada vez mais tempo e ficámos cercados pelo Medo. Os medos do Bin Laden, das mudanças climáticas, dos assaltos aos Bancos, dos roubos por esticão, dos engarrafamentos do tráfego, das subidas das taxas de juro, dos malefícios do tabaco, enchem as notícias de agora. O curioso é que a maioria desses perigos nem nos diz respeito directamente. Por que nos avisam tanto e enchem os nossos tempos com notícias destes medos? Com tanto medo instantâneo, conseguiram roubar-nos o tempo da esperança e, na verdade, quando alguém é vítima de um roubo, o produto aproveita a outro-alguém, ao ladrão. A habilidade é que, para cúmulo, este ladrão nos é apresentado como amigo (por exemplo, os nossos amigos Bancos, que tão generoso empréstimos nos fazem). Ficamos roubados e agradecidos por sobrevivermos o instante, cheios de medo da morte, não percebendo o nosso papel de mortos-sobreviventes. Manipulados, deixámos de ser responsáveis. Sem Deus, deixámos de nos temermos e perdemos o remorso. Quem apenas tem como desígnio sobreviver, quem vive numa guerra permanente, não se importa com a forma como resolve cada momento do conflito, qualquer habilidade serve para ir em frente e o erro ou o golpe, perdida a responsabilidade e o remorso, só existe quando tem consequências, quando se é descoberto. E, mesmo nessas circunstâncias, muitas vezes pode ser um mal que vem por bem. Até a privação da liberdade (isso existe para os oprimidos permanentes?)pode ser a criação de um espaço para a escrita de um livro que logo se transforma em best-seller pela história éxtraordinária que pode contar. Tem é de ter tragédia e manha.
Chegámos assim aos super-heróis e celebridades. Aos que têm uma história para contar.
Sem esperança, atingimos o absurdo.
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