23-4-04
Janto no Transatlântico a pensar noutro jantar em que me apetecia estar, lá junto ao Atlântico e em boa companhia.
A Itália do sul surge depois de algum atraso por tempestade na chegada a Munique. Cheguei a um estado em que andar às voltas no ar não me preocupa minimamente. Tudo vai correr bem como sempre.
Por que será, então, que me preocupa manter esta economia do olhar e evito o esbanjamento consumista das palavras? É muito melhor olhar o sol a pôr-se vermelho por cima da asa do avião e a recortar de vermelho os contornos das nuvens do que participar na conversa estafada da comida de companhias aéreas ou das últimas compras de limoncello. Mas, de qualquer modo, às vezes até apetecia ser diferente. Refugio-me no La Republica, onde fico a saber que em Itália, tortura é só da segunda vez. Agora, a polícia pode usar meios menos convencionais com alguém, porque por uma lei deste governo, tortura implica a ideia de repetição. À primeira vale tudo! Estes italianos são loucos!
Mas os médicos vão manifestar-se na rua, amanhã, pela defesa do Serviço Nacional de Saúde.
Tinha uma vaga ideia de Sorrento. As casas penduradas escarpa. Desta vez posso ver o mar aqui por baixo da janela do quarto. É noite e o Vesúvio dorme sossegado do outro lado da baía.
24-4-04
Herculano fica a cerca de uma hora de comboio de Sorrento. Na fila para o bilhete de comboio, uma americano exige o money back, porque o autocarro não chega há uma hora. Os comboios pinchados e com ar suburbano, de outros tempos, funcionam a horas (melhor, aos minutos). Têm excesso de música ambiente, de crianças a tocar acordeão e outros saxofones bufados por alguns com ar de desemprego que não promete terminar aos cinquentas anos. Nos placards de rua, Berlusconi, lembra-me Santana Lopes, anunciando a obra feita. Cada vez mais me parece que devia ser vedado aos políticos comprarem espaço com o dinheiro dos impostos para propagandearem a sua acção. É um insulto à inteligência.
As ruínas da cidade, menos imponentes, mais limitadas que as de Pompeia, são ainda assim, curiosas. Mais não seja pela novidade de as casas chegarem a ter 3 pisos. A visita é rápida pela necessidade do trabalho que espera.
Sente-se a pobreza destes sítios. Nos olhos dos miúdos, na forma de vestir a lembrar-me a minha terra alguns vinte anos antes. E a desordem urbanística total e o trânsito caótico com sinais luminosos possivelmente para colorirem as cidades. Só para isso, que, por aqui, ninguém os vê. Estou snob de civilização.
Mas gosto de ver toda esta roupa estendida nas varandas, a apanhar sol. Um hino do sul onde a roupa vai respirar depois de dormir.
25-4-04
Desencantam-me estas companhias que passam por este dia, meio envergonhados com a lembrança, como se nada tivesse acontecido. É bom lembrar, ainda que sozinho.
Há 30 anos era dia de ir ver a nota de Anatomia Topográfica. Era, mas não foi. Foi dia de estar de orelha no rádio e depois na televisão espreitando a vida que começava a acontecer lá fora. Já perto da noite, foi quando comecei a ir à rua comprar jornais e o República anunciava que não estava censurado. Havia caras novas nas pessoas da rua ou era a minha forma de as ver. Alguma descontracção de irreversibilidade depois de, ainda a meio da tarde, uns rumores terem falado de GNR a resistir. Mas foi irreversível, apesar de à noite, uns quantos generais terem aparecido a prometer Evolução. Tiveram apenas uma vitória transitória como são todas as que contrariam o sentido da história (mas houve uma que durou mil anos!). Há pois que ter cuidado, que eles continuam a andar por aí e até já fazem que alguns se envergonhem da lembrança.
A tarde serve para uma redescoberta de Positano com tempo para fotografias antes de mais uma cerimónia gastronómica. Cansativos estes dias de conversas ocas.
26-4-04
Há dias assim, predestinados para uma coisa e sai tudo diferente. De manhã, espreitando pela janela, o mar lembrava-me Peniche e a travessia para as Berlengas. Não, não me pareceu boa ideia ir a Capri. O Vesúvio, ali do outro lado, pareceu-me mais sensato.
No meu comboio já familiar até Herculano. Lá, logo à saída da estação, tive de esperar quase uma hora pelo Blue Bus, que trepa pelo monte, numa estrada alpina, em esforço na subida. Nas margens da estrada, a terra é pedra pomes cheia de vegetação, duma verdura reconfortante depois do fogo. O Blue Bus tem uma primeira paragem onde nos entra pela porta um simpático velhote de 70s, que num inglês perfeito, pergunta se alguém fala italiano. Não, ninguém, mas todos estávamos prontos para o ouvir em inglês. E conta-nos a história dele, do guarda do Vesúvio. Andrea De Gregorio viu o vulcão explodir em 1944, ainda jovem. Depois, em 1952, foi destacado para lá e isso permitiu-lhe fugir à fome que diz imperava por estas bandas. Criou uma loja de vendas de recordações e ali ficou a receber turistas de todo o lado, entrando pelos autocarros. Mostra-nos o local onde existiu o funicular que fez existir a Funiculi funicola, a canção popular napolitana, e depois o teleférico, acabado quando um raio o partiu. Pensou-se na reedificação o teleférico, mas foi então que uns tipos do greenpeace acharam que o impacte ambiental era excessivamente negativo. Por isso, actualmente algumas centenas de autocarros vão para cima e para baixo a bem do ambiente. E nós, pobres curiosos, depois de o autocarro subir mais um pouco, contornando um rio de lava até chegar ao parque final ladeado de bares e tendas das vendas habituais nestes casos, temos de trepar durante um quarto de hora um caminho com 14% de inclinação para chegarmos à beira da cratera e ver uns fumitos do bicho que dorme 8 quilómetros por baixo, perturbando o sono de algumas centenas de milhar de habitantes lá em baixo, nas margens do golfo de Nápoles que se avista daqui de forma única. Mas Andrea, que vive ali há 52 anos, garante que o Vesúvio está tranquilo, ele que já o viu zangado. Tem um ar tranquilo, este Andrea. Mas gostava que o teleférico viesse.
Depois é a descida até ao parque de estacionamento, onde, incautamente, o alívio da bexiga distendida custa nos WC pré-fabricados de plástico a módica quantia de 1€. Mais vale, por esse preço, descer mais um pouco até ao bar, beber um café e ir tranquilamente à casa de banho... antes de tomar o Blue que vai serpentear encosta abaixo fazendo as curvas todas na contra-mão, em tangentes aos pares com que se cruza, obrigando ao recuo dos carros pequenos que sobem. Um verdadeiro festival de condução napolitana.
Quando chego ao Hotel, fico contente por hoje não haver jantar programado. Apetece-me ficar aqui na varanda, ao pôr do sol, a olhar o Vesúvio que se vai apagando lentamente até amanhã. Um barco de cruzeiro apita na partida, estragando o instante. O mar está calmo, para me levar amanhã até Capri?
27-4-04
Acabou a reunião, duas horas antes para mim para estar a tempo no jetboat que me levou a Capri neste dia quase de Verão. A viagem neste barco dura 20 minutos durante os quais a península de Sorrento vai desaparecendo à esquerda e surge em frente Capri como um tricórnio. Deste lado da ilha, a paisagem não impressiona, são simplesmente casas brancas, banais dispostas pela encosta acima. Antes de sair do porto sou vítima de publicidade enganosa: Visite a gruta azul 8€. Na bilheteira, um aviso breve de que não inclui o barco a remos para ir à gruta. Isto é, não se trata de visita à gruta, mas da viagem até ao barco a remos que vai à gruta. A viagem faz-se ao longo da parede da ilha e à chegada uma multidão de barcos destes, aguardam a abordagem de pequenos barcos a remos para onde saltamos e vamos de cú no chão por motivos que daí a pouco iremos perceber. Com sorte fiquei na proa, sozinho. O par da popa teve prémio de uma americana jovem para aí com uns 120 kg... It’s cold in Ontario! Já no barquito a remos lá nos leva o barqueiro até outro barco maior, onde somos abordados para comprar o bilhete de ingresso (4€) e os serviços do barqueiro (4,3€). Achei piada que ele ainda se fez ao troco! Pois então são 8,3€ para entrar num buraco, onde subitamente ficamos às escuras até que as pupilas se adaptem e comecemos a ver a água de cor azul turquesa. Depois, em não mais de dois minutos, damos uma volta para nos dizerem que o Tibério ia ali tomar banho e ainda temos tempo de ver que a reflexão da luz na parede branca da gruta a pinta de azul num breve instante antes de sairmos. Na pior das hipóteses este barqueiro ganharia 100€/hora, muito acima de um especialista hospitalar em tempo completo prolongado. Claro, que quem ganha é o dono do barco (essa é ainda uma hipótese pior). Isto durará há muito tempo? Não sei, mas para os que lerem e para mim (si retornare a Capri) gruta azul nunca mais! Regressemos à Marina Grande para ir ver Capri.
Foi bom comer tostone, uma tosta mista com mozarella e tomate, no Caffe Caso na Praça Umberto I, uma das esplanadas francesas que ocupam a praça toda deixando um corredor ao meio para os turistas chocarem uns com os outros. Combustível suficiente para dar um passeio primeiro por uma viela desabitada, à direita de quem entra na praça vindo do elevador, onde os gatos comem restos de comida de turista (cuidado bichos que ficam gordos). Arcos e portas de madeira, mas sempre a descer a convidar ao regresso à praça, que nunca se sabe até onde se desce...
Da próxima desci pela ruela da esquina da praça e fui-me deixando andar. Um mundo diferente, cheio de turistas, barulho e hotéis, que são anunciados pelos guias como custando a noite 350€. Isto agora é moda por aqui, já há dias tinha ouvido outra falar com admiração destes preços. Já fizeram as contas a cada minuto de sono? Nem pensar dormir, companhia obrigatória. Já tinha visto numa imobiliária que alugavam casas em Agosto por 30000€ por semana.
Deixei-me ir em direcção aos Farilhões, uns pedregulhos espetados no mar como os das Berlengas. Junto deles um hotel onde Churchill e Eisenhower definiram os destinos do mundo. Ao menos tinham bom gosto estes tipos, não iam para uma base aérea metida no meio do Atlântico. E fumavam puros, eram gordos e pensavam. Os tempos têm recuos de vez em quando. E volto à praça de onde partem todos os caminhos. Agora em direcção ao Arco Natural (saída por um arco no meio de um prédio amarelo). É só seguir as setas, mas o caminho a certa altura parecia não terminar. Mas lá cheguei após novo susto de escadarias no fim do percurso sempre a descer, e muito!, e com ritorno pelo mesmo caminho. É um recanto repousante para depois da caminhada, com visão do verde do mar lá no fundo. A correr que o barco de volta é às 4.20. Cheguei a tempo com descida pelo descedor, que já não houve tempo para voltar a pé pela estrada ou por outro lado qualquer. Anacapri fica no segredo dos deuses ou das sereias. Que a guardem.
28-4-04
Era para ser um dia de viagem sem história.
Pela janela espreitei, recostado na cama do quarto, pela última vez, o Vesúvio a despedir-me dele e deixei-me ficar ali sossegado, enquanto o mar da baía mais parecia um lago por baixo da porta da janela. Acordei com sabor a domingo.
Chegados ao aeroporto, foi a festa. As imagens de Abril nas bandeiras vermelhas da CGIL e de outros sindicatos, os locais de check-in todos ocupados. Não há check-in, ninguém voa em Itália hoje, que os sindicatos desencadearam uma greve sem aviso. Os olhares da esperança e do saber da força descoberta. Sem eles, o mundo pára se for preciso. É isso que gritam os apitos, num coro de cigarras ensurdecedor sempre que alguém dá alguma informação nos altifalantes do aeroporto. A polícia de choque ainda chegou a aparecer, mas foi-se embora. Pelas 6 da tarde, a luta acabava por hoje. Amanhã irá continuar. Amanhã e sempre que eles quiserem. Tudo termina com um comunicado à população lido pelos grevistas. Será esta a via correcta, a das greves politicamente incorrectas?
A solução foi a deslocação do grupo para o aeroporto de Bolonha de onde, em princípio, partiremos amanhã. Uma viagem de autocarro pela Itália, por esta terra que também já foi Império. Pela auto-estrada fora, senti-me como se estivesse a passear nos States e, por momentos, imaginei que será assim que um dia se passeará nos EUA: com o sentimento de que aquela terra também foi, há muitos anos, sede de Império. Os Impérios acabam sempre. Com esta tranquilidade cheguei a Florença para uma noite de recurso no Villa Medici. 650€ por noite! Estes italianos estão loucos! E já não são só eles, pelos vistos.
29-4-04
Por Madrid até ao sossego de Lisboa. O retorno às imagens de que gosto ou a substância da saudade.
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