Viu com contornos precisos o homem que apareceu no cimo da
colina, com passo firme e destino determinado. Caminhava naquele fim de tarde,
vestindo desportivamente, mal deixando perceber algo que lhe pendia do ombro.
Esfregou os olhos para ver melhor e, claramente, era uma corda grossa de sisal,
daquelas que vira usar a prender carradas de mato nos carros que povoaram a sua
infância puxados por vacas em chiadeira intensa serra abaixo. Mas era mais
curta, bem mais curta. Nesse instante, lembrou-se do vento suão e sorriu na
antecipação da brisa a varrer-lhe a face. Há momentos em que o espaço nos
envolve e voltamos ao útero por instantes. Pelo menos imagina-se que o útero
assim deva ser, apesar de ser impossível confirmar por razões óbvias a
evidência da coisa.
E o homem continuava a descer, na encosta, determinado. Olhava-o
e ansiava perceber o que lhe iria na cabeça, mas não conseguia perceber o que
diziam os olhos à distância a que estava. É nos olhos que deciframos o mais
fundo da alma ou os segredos bem guardados. Mas estavam tão longe que nem com a
tele de 800 mm lá conseguia chegar. Quando estava quase enquadrado, a distância
desfocava a imagem e a mudança de posição fazia perder o objeto. Houve ali uns
instantes de desnorte com o objeto a fugir para fora da mira. Felizmente,
momentos breves, que quebravam a sequência mas não a história. A sequência
temporal das fotos deixa perceber a narrativa. Continuava a avançar sempre na
mesma direção. Acontece algumas vezes nestes casos que a distância até ao
destino que se não adivinha parece tender para o infinito. É sempre longo o
caminho que se não conhece, porque tem a distância das dúvidas e a incerteza da
chegada alguma vez. E mais ainda é para quem vê andar do que para quem anda.
Fica-se sempre a perguntar, para onde raio é que ele vai. O desconhecido fica
menos oculto quando se desvenda e mais insondável quando o tentamos perceber
pelo caminho que os outros percorrem.
A caminhada continuava, mas aquela distância nem se
imaginava onde terminaria. Além, no rio? Não, viu-o passar o rio de um salto,
confirmando que os grandes desafios se ultrapassam com decisão e leveza de
gestos. Aterrou suave na outra margem e foi nesse movimento que a corda voou
como um chicote e deu a perceber que era de uma grossura ainda maior que tinha
parecido alguns instantes antes quando pendia do ombro. Sim, era uma corda só
um pouco menor que a das amarras dos barcos e tinha aspeto novo ainda sem a cor
escura que o tempo e a chuva lhes dão. E a descida continuava.
Foi então que lá longe começou a avistar o zambujeiro
emergente do granito. Seria aquele o destino provável e, nesse instante, foi
percorrido por um sobressalto, tanto mais que sentia mais que nunca o vento
suão. E é sabida a relação de homens sozinhos, cordas e vento suão. Nesse
momento percebeu que algo o prendia, o impedia de se levantar e que também a
voz lhe não saía. Debateu-se sem sucesso. Estaria amarrado? Não, porque então
poderia gritar. Teria tido um AVC? Também não, sentia todos os membros
paralisados. E também não estaria morto, porque as ideias continuavam a
percorrer-lhe a cabeça. Não percebia como estava ali impotente, sem poder
participar na ação, limitado a ver. Como os espectadores da televisão. E sem a
capacidade do zapping, porque fixado na imagem. Absolutamente focalizado
percebeu tudo de repente, quando o viu atirar a corda para o ramo alto da
árvore. Tinham acabado as dúvidas e uma angústia ainda maior invadiu-o todo.
Ali fixado, parado, incapaz de agir e condenado a ver aquela cena em direto.
Era claro, de seguida, iria subir para a pedra, fazer um nó, colocar o pescoço
dentro dele e, finalmente, projetar-se no espaço ficando a oscilar na brisa do
vento suão. Nunca tinha conseguido perceber porque se antecipa o certo, mas
percebia bem que há momentos em que tudo parece encerrado. Daí, começou a
sentir uma espécie de solidariedade com o homem vestido desportivamente que
atirava a corda de forma firme por cima do ramo grosso do zambujeiro. Fechou os
olhos, apesar de tudo, recusando o espetáculo inevitável da morte em direto.
Achou curioso ter conseguido fazer esse movimento e ficar na escuridão ouvindo
melhor a brisa do fim da tarde. Teve pena de não ser crente para pedir a um
Deus que interviesse e livrasse aquele desgraçado de tal sorte. Mas uma vez
mais, também aí as soluções lhe fugiam. Só a consolação de poder continuar de
olhos fechados, longe da visão, mas perto da certeza daquele desfecho
inevitável.
No final da tarde, quase sem vento, havia um silêncio imenso
que desmascarava qualquer movimento mesmo longínquo. Cerrou mais os olhos à
espera de um estalo, seco que ecoasse na planície ou talvez mesmo um último
grito, desesperado, de um arrependimento fora de tempo. Nada. Antes um roçar de
vai-vém e um esvoaçar de pássaros.
De novo se surpreendeu porque conseguiu agora esfregar os
olhos naquele gesto prévio a tentarmos ver melhor e primeiro desfocado, mas
depois cada vez melhor viu o homem que vestia desportivamente sentado no
baloiço voando para trás e para a frente. Quando abriu, finalmente, os olhos
apenas havia o zambujeiro e nem vestígios de homem, nem de forca nem do
baloiço. O vento suão era quase inaudível.
Deitado na rede brasileira na tarde quente depois do almoço
não tinha resistido à brisa morna que o embalava. Depressa o murmúrio das
folhas tinha ficado distante, o livro oscilou alguns instantes para baixo e
para cima até lhe cair finalmente no colo.
Tinha um dia dito que era no sonho que melhor
experimentava a realidade.
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