quinta-feira, julho 08, 2010

Velório

Quase de propósito tinha acabado de ler «A sombra do que fomos» do Luís Sepúlveda dias antes de entrar naquele local solene onde encontrei muitos dos que foram. Na verdade, pareceram-me sombras tristes apesar do triunfo a que alguns chegaram sem nunca conseguirem dar forma ao corpo que tiveram. Não, mesmo descontando a ambiente pouco convidativo à boa disposição, olhando-os encontrei sobretudo a tristeza, não por terem falhado, mas sobretudo a de não terem mais a esperança, que, alguma vez, as alvoradas hão-de cantar. Há um conformismo de derrota induzido pela brevidade da vida, que lhes desfoca o olhar que foi vivo e agora morre em vazios sem alternativa. Ainda foram a tempo de bem-estar, mas a grande certeza que têm é que deixam aos que se seguem um mundo de dúvida, virtual e frágil. Há, por isso, uma inquietação do ar e algum alívio por saberem que os que partem o fazem na ignorância vivida do desastre completo.
As sombras vagueiam em movimentos lentos quase não tocando o chão num pudor mal percebido. Os velórios são, geralmente, a celebração dos que ficam, mas aqui notei alguma inquietude no ficar, um quase desejo de acompanhar o que parte numa atitude de demissão final, deixando a pairar a ideia translúcida da solidariedade, que os novos olhos dificilmente conseguem enxergar.

quinta-feira, julho 01, 2010

Livre

Nunca percebi bem a razão de ser da designação de Assistente livre, que por esta altura me chega todos os anos enviada da FML. Imagino que a liberdade não seja minha, mesmo sendo eu o titular da dita e também não concebo, que sendo a instituição que é, me queira enviar uma mensagem subliminar de que existem outros Assistentes, por oposição à minha condição, presos. Menos ainda que me queiram incitar a ensinar Medicina de uma forma inteligente, livre das tradições de marranço e subserviência da Escola, virada para a descoberta do bem-estar dos doentes. Resta-me, assim, a certeza de que a minha liberdade será exercida numa transmissão do que sei sem vénias académicas às excelências professorais. Pelo que vejo à volta, é grande privilégio!
Há ainda uma outra hipótese para a etimologia do adjectivo, bem mais prosaica, mas não necessariamente menos viável: livre... de encargos. Para uma instituição incapaz de gerar receitas e de baixos recursos que pensa poder fazer a sua missão em regime de low cost, é bem possível que seja este o contexto. Estranho é que os alunos não reivindiquem também a sua qualidade correspondente de alunos livres... do pagamento de propinas para suportar os custos dos pobres Professores aprisionados (a tradições e vénias obsoletas).
Livre é quem, simplesmente, tem o poder de desprezar a força dos poderes.
Embalado sigo no que me ressoa em fundo:
Chi son? Sono un poeta.
Che cosa faccio? Scrivo.
E come vivo? Vivo.

Alguns vejo eu mortos e outros a morrer todos os dias.