terça-feira, janeiro 26, 2016

Patagónia em 3 semanas

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No aeroporto de Lisboa não havia sistema informático, seguramente uma falha por ineficiência se fosse uma empresa pública, na sua nova situação, possivelmente uma falha técnica. Check-in manual e nevoeiro das 6 da manhã a fazerem partir com atraso de mais de uma hora e valeram as quase 3 horas de que dispúnhamos em Madrid, para que o dominó de eventos pacientemente organizado não começasse a ruir logo às primeiras. A paragem de Madrid foi à conta para fazer check-in para Buenos Aires. Passadas as dúvidas sentámo-nos num avião moderno da Ibéria. Confirmei mais uma vez que no aeroporto de Madrid é bom planear sempre uma estadia razoável entre voos ou, pensar vir de véspera no comboio e dormir tranquilamente toda a noite na couchette. Quase 14 horas de avião voadas tranquilamente com sestas pelo meio e muitas interrupções com avisos histéricos de turbulências que não passaram de ligeiros solavancos. Pessoal de bordo quase sempre ausente, exceto a pedido. Lá nos trouxeram uns snacks que não passaram disso e o resto é self-service. A hidratação preventiva nos voos não existe na Ibéria. À chegada o aeroporto apresentou-se algo usado, mas decente. E lá fora mais de 30ºC à nossa espera. Um calor húmido. E lá estava um simpático taxista da Uber com o nosso nome à nossa espera para uma viagem de 30 km até ao hotel. Na saída dos aeroportos a paisagem está diferente, na autoestrada, agora, sempre vários carros particulares parados na berma, esperam a nossa chegada evitando assim mais despesas de estacionamento nos parques dos aeroportos. A recepção do hotel é correta sem aventuras e o quarto correto para o preço. Limpo, decente, bem situado e com wifi (intermitente, mas deu para avisar a família que chegámos). O banquete da Ibéria manifesta-se insuficiente e vamos passada a meia-noite procurar À volta do hotel algum sítio para aconchegar o estômago para noite. O único aberto é o café London City com retratos de Cortazar pelas paredes e a lembrança de espaços como eram o Império e o Monte Carlo. As sandes vieram generosas acompanhadas de chocolate e café com leite e… dois copos de gasosa fria com os cumprimentos da casa. Ainda estávamos acabados e sentar e dois trovões depois, abate-se uma chuvada diluviana na noite quente de verão. Então é assim à traição? Algo pingados, chegamos ao hotel passados uns 500 metros. Fim de primeiro dia de objetivos cumpridos.

 Pela manhã tínhamos debaixo da porta a confirmação da ida ao show gaúcho. Mais vale tarde do que nunca, mas a Viator provoca alguma tensão nos viajantes. Fora isso, a guia que nos leva apresentou-nos o mate contando-nos que na sua origem está uma lenda de duas deusas, a lua e a nuvem, que curiosas desceram à Terra tendo caído nas florestas das cataratas de Iguaçú, onde como costuma acontecer às meninas que se aventuram na floresta apareceu um jaguar, que logo se preparava para as almoçar. Mas eis que nessa altura, surge o caçador que espanta o jaguar e salva as meninas indefesas e as leva para sua casa dando-lhes o conforto e alimento que podia mesmo sendo muito pobre. Gratas, depois de terem voltado para o seu meio, o céu, pensaram como haviam de recompensar o seu salvador e foi então que lhe fizeram entrega do arbusto do mate, a partir do que o caçador fez a infusão que, generoso, sempre partilhou de roda com os amigos. E por isso, ainda hoje, o mate é servido numa cabacinha pequena que corre de mão em mão, ignorando contágios ou, melhor, promovendo o contágio da amizade e da partilha entre as pessoas. E depois de provado o mate, veio a informação sobre gaúchos, homens valentes que ninguém agarra e que defendem na ponta da faca a sua forma de estar. Mais real a sua história é a de quem durante a guerra civil entre unionistas e federalistas não tomou partido, sendo desejado por uns e por outros e resistiu a defender um dos lados porque o seu lema de vida era outro, a liberdade total. Em Santa Susana, ao norte de Buenos Aires, tivemos um dia de folclore gaúcho, com alguma história, passeios a cavalo e de carroça e costumes musicais e artísticos e culinária local desde as empanadas até ao assado com vinho e cerveja em bar aberto. A sentir-me um pouco turista tótó, mas tudo bem. No final do dia, passagem breve pela Praça de Maio com olhar para a Casa Rosada (já não com a mistura de sangue de vacas e cal, mas mantendo o tom), protegida a distancia por barreiras metálicas e com polícias de colete à prova de bala ou não seja aqui que os argentinos desgostam dos seus políticos de forma tradicional. Quase junto, o Banco Nacional e a Catedral Municipal, última igreja do Papa Francisco antes do upgrade que lhe fizeram para a Igreja de São Pedro. Por fora, tem um aspeto clássico com colunas que suportam um vasto frontão triangular. Por dentro, a luminosidade de um templo românico, rica sem impressionar. Uma praça, portanto, onde capital, política e fé coexistem como convém ao poder instituído. A troica habitual. Pela avenida larga do outro extremo da praça, caminhamos entre comércios fechados e paredes bastante pinchadas passando cafés com ar de mulheres velhas e ricas, com dignidades presentes numa beleza já disfarçada por anos que não perdoaram. È nesse trajeto que chegámos ao Café Tortoni, apinhado de turistas e com uma argentina jovem e arrogante que quase não nos deixava entrar por estar o café cheio. Depois de uma espera breve, lá ultrapassámos o bloqueio da senhora. Já sentados e ao fim de alguma espera não desperdiçada ver vitrais do teto, o mobiliário das mesas e a decoração das paredes, onde visitantes ilustres foram deixando pinturas, desenhos e poemas, chamámos a empregada, outra mal encarada que com algum esforço acabou por nos trazer a cidra sob pressão, salada e tostado Tortoni. Do fundo saiam sons de tango e, ao fim da sala, uma barbearia e um canto de poetas num passado bem distinto.

 Mais um dia começado com alguma preocupação porque os tours de hoje não nos tinham sido confirmados pela Viator. Depois de alguns mails ao fim do dia de ontem, acabaram por responder de manhã que tinham confirmado com a recepção do hotel. Verificámos depois que efetivamente o tinham feito. Desta vez foi a recepção que decidiu guardar segredo e nos não disse nada… Chegarem meia hora atrasados também não tem nada de extraordinário, é só mesmo para mais algum tempo para o pequeno-almoço ou criar alguma emoção a viajantes mais ansiosos. Depois sempre chega uma guia cheia de sorrisos que se desdobra em explicação em três línguas para que não nos escape nenhum pormenor enquanto vamos começar a viagem para Tigre, um arredor de pequenas ilhas onde a classe média de BA, tem as suas casas de fim-de-semana no delta do rio. Ficamos a saber que as casas nem são caras (30000 a 100000 dólares), mas a manutenção não é barata. Há barcos supermercado, barcos assistência médica, barco de recolha de lixo, tudo a levar pesos. No barco vamos indo de rio em rio com casas pequenas coloridas nas margens, de onde sentados a apanhar sol nos vão acenando uns enquanto outros vão pescando ou preparando os assados do almoço. As águas são castanhas dos sedimentos que transportam e trazem arrastadas plantas à superfície vindas das cheias a norte, possivelmente também com cobras, aranhas e outros animais não residentes habituais, que estão a preocupar a tranquilidade dos habitantes. Desta vez ainda não vieram os jaguares que por aqui andaram e que os espanhóis tinham confundido com tigres, razão por que a cidade assim se chama. Por agora, a ferocidade animal está confinada aos argentinos segundo a apreciação da guia. Passamos depois pela parte costeira de Tigre em direção a Santo Isidro, com mais segundas residências de gente de BA. Em Santo Isidro haverá uma Igreja que os 20 minutos de paragem não permitem ver, porque nos despejam num mercado de aretesanato do mundo naquilo que já foi uma estação de comboio que fazia a ligação a BA. Depois de nacionalizada há uns anos, o novo dono terá perdido o relógio e a incerteza da existência das viagens de regresso deste tour levou as companhias destes tours a terminar o serviço, substituindo-o por viagem também em autocarro como à ida.

E hoje é um dia cheio, mal chegados à idade temos à espera outra carrinha para nos apresentar BA na sua diversidade. Primeiro para norte até Palermo, com longas áreas de jardins e para atividades desportivas, um enorme parque onde também está parte da Universidade de BA, depois pela elegância afrancesada de Recoleta mais a sul até à já nossa conhecida praça de Maio onde se faz uma primeira paragem para ir a correr ver a Catedral. E BA em três horas continua passando por San Telmo (onde estamos alojados) até ao jardim/praça de Lezama, onde avistamos a Igreja Ortodoxa Russa lá ao longe e continuamos para Boca, passando a Bombonera, um estádio azul e amarelo com bancadas bem inclinadas onde joga uma das loucuras da terra. Finalmente, chegamos ao porto onde parte da história começou com a chegada de emigrantes europeus. Aqui se instalaram trabalhando nos portos e nas indústrias afins e com restos dos matérias com que trabalharam ergueram as suas casas, que coloriram de cores quentes e primárias na expressão do afastamento da tristeza possível das suas vidas sublimada no Tango que criaram. Agora para os turistas, tocam nos bares, dançam tango e vendem toda a quinquilaria tradicional do artesanato que possamos conceber num Caminito absolutamente a não perder. De toda a volta é aqui que mais alma argentina se pode sentir, sem a sofisticação com que o poder come a autenticidade. Na volta, literalmente debaixo da ponte que os viadutos estabelecem, os novos emigrantes vivendo como podem, nas casas que podem, acenam e riem sentados na rua, alguns banhando-se em piscinas de plástico que hoje a temperatura chega aos 36ºC. Um pouco mais à frente na substituição de um porto que tinha substituído o primeiro de Boca, mas que também não durou mais de 10 anos, há agora Puerto Madero, zona sofisticada de arranha-céus e restaurantes à maneira das docas. Uma cidade de contrastes como o mundo em que se vive, com realidade e faz de conta e onde se sente que algo diferente também seria possível. Globalmente, parece entristecida e suja, mas tem a avenida mais larga do undo. Possivelmente para condizer com um país com o rio mais largo do mundo. Uau! Para o retrato de BA ficar mais completo, faltava o Tango da cidade. No espetáculo do Café de los Angelitos, de azul angelical decorado. Num palco de dois níveis, os músicos tocam do pico, enquanto em baixo outros artistas cantam e dançam num tango recreado pela burguesia de séculos passados, três-chique, com coreografias perfeitas muito técnicas e bailarinos de escola. É sempre assim, os poderosos sempre acabam por roubar também a cultura de quem a cria, dando-lhe roupas melhores, outro charme, à custa de alguma autenticidade, que essa não se expropria. No planeamento da viagem tinha ficado o terceiro dia para revisões. Assim fizemos com passagem pela Casa Rosada, onde o novo Presidente, não autoriza visitas, até Porto Madero para ficar na margem do cais a ver a skyline. Depois de táxi até Boca para mergulhar de novo na experiência das cores e dos cheiros. A chegada logo fizemos poses de passos de Tango para mais tarde sorrirmos e na varanda, ao lado de Francisco, também acenei para a praça. Depois tango enquanto se almoça. Tango, muito tango na milonga. Com bailarinos que não vão aos casinos, de olhar duro e exigente, sem luxos no corpo picado até dos mosquitos, que rodopiam, de cá para lá e de lá para cá, num palco estreito de menos de um metro por cinco metros de largura. Trazem alguma verdade, até na necessidade que têm de vir no fim da algumas danças de chapéu estendido buscar alguns pesos. Mais uns momentos de encher os olhos dos amarelos, vermelhos, azuis e verdes das paredes de madeira ou de chapa ondulada e apanhamos novo táxi, com um destino preciso, encontrar a Mafalda no cruzamento entre Defesa e Chile. Desta vez um taxista conversador, 50 e poucos anos a transbordar empreendedorismo. Curioso da nossa origem, da forma como estávamos na Argentina, do que tínhamos visto para logo abanar a cabeça e torcer o nariz quando lhe dissemos o que pagámos à Viator pelos tours a Tigre e na cidade. Que pena não nos ter encontrado antes. Mas eram quatro da tarde, muito a tempo de nos levar a uma Igreja da sua devoção a 58 km da cidade, em Lujan. Local santo, onde no século XVII ou seria XIX não interessa, uma carroça que levava uma vIrgem para o Perú, encalhou por milagre, impedindo a virgem de sair da Argentina. Foi intervenção divina a Virgem ter ficado na Argentina e logo ali ficou decidido fazer uma capela que depois, entre 1887 e 1932, deu lugar a uma Basílica com torres de mais de 100 metros que se vê até da autoestrada e que, nem por milagre, vai crescendo cada vez mais à medida que nos aproximamos. Sempre que cá vem trazer turistas tira uma foto com a Basílica em fundo e enche uma garrafa de água para ser abençoada por um dos padres residentes para levar desta vez para uma «amiga» que foi picada por uma agulha infetada pelo vírus da sida. À entrada da igreja, passadas as enormes portas de bronze e ultrapassados os cães deitadas logo ali, há vários cadernos de encomendas de desejos à Virgem. Lá foi escrever, com grande demora, talvez o pedido de salvação da amiga ou o seu também. Fui deambulando pela Igreja por entre cães deitados aqui e ali e quase junto ao altar, deitado no chão, estava Alberto, um velhote peregrino ao fim de uma caminhada de mais de 40 km sob calor intenso, que decidiu apesar de toda a miraculosidade do lugar, ir-se abaixo, suando abundantemente com sinais de falta de corrente sempre que se levantava um pouco. Conferida a glicemia e o pulso, conseguidas algumas intermitências dialogantes, tentou-se sentar o homem, que logo revirou os olhos e foi quase até ao encontro da Virgem, não fossem uns enérgicos apertos de mamilos, que ressuscitam o mais adormecido. Afinal a Virgem, tinha enviado naquele instante uma notável intensivista aquela igreja, conduzida por um taxidriver, com um carro a abarrotar de pedras semi-preciosas e as mais variadas coisas de vender, numa tarde em que teria de ser inventada, mas que afinal existiu. Só uma nota, fica o mail (comacristian@gmail.com) para, quando voltarmos ou amigos cá vierem, não haver necessidade de desperdiçar dinheiro com agências de viagem. Cristian fará uma pausa nas voltas da cidade e irá onde for preciso a preço módico, incluindo borlas dos transferes do aeroporto, permitindo assim evitar os «parasitas» da Uber que lhes fazem perder a cabeça e lhe dão ganas de destruir carros ou algo mais. No final, foi-nos dizendo que lhe tínhamos resolvido o dia. Pelo carro dava ao dono 700 pesos por dia, em pagamentos à semana. Nesta deslocação que seriam 800 pesos ou 50 euros e que acabou em 40 euros mais 10 dólares, menos 5 pesos de recordação oferta de uma nova nota acabada de editar, ainda ouviu, graças ao spotify, a Ana Moura para perceber o que era fado. Ficou contente, enriquecido com o dia. E nós também. Fim de BA absolutamente não programado tem outro gosto.

 E agora voamos até às terras do Fim do Mundo aproveitando as três horas e meia de viagem para escrever estas notas. Nesta altura, aqui à esquerda no GPS do ecrã, estão as Malvinas da discórdia de há uns anos. À chegada um carro do Carlitos estava à nossa espera, rigorosamente como combinado no whatsapp com a dona da B&B Nahuel. A viagem foi curta e logo aí percebi que no booking.com os mapas não têm indicada a inclinação das encostas e o que parecia ser perto do porto só o é quando se desce… Mas enfim, os motoristas de táxi são mais simpáticos que alguns de Lisboa e sobem, agradados, a encosta. Deu então para passear até à beira mar, ver o Chile do outro lado e deste a perícia dos estivadores no empilhamento dos contentores no porto. Junto ao porto observam-se mensagens de ternura para os originários do Reino Unido, ainda resquícios da guerra que perderam mas de que não aceitam o resultado. Até ao quase fim da terra são meia dúzia de quarteirões em direção ao norte, até um restaurante chamado Volver, uma clara indicação de voltarmos para trás. Atraem-me sempre estes pontos de chegada ao fim, seja o Cabo da Roca, Key West ou este aqui. Depois de chegar ao fim, vem a enorme oportunidade de recomeçar. Aqui até a palavra passe do wifi tem significado: findelmundo. É aqui que estamos hoje e nos dois dias que se vão seguir.

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