O DISTRAÍDO
O problema começou ao fim de uns anos de por cá andar, naquela altura em que dizem que começamos a ter consciência de nós. Pelo caminho ia pensando se iria conseguir ter aquele brinquedo desejado e na altura em que o recebeu, percebeu também que todo o tempo em que pensou se aquilo iria acontecer tinha sido um tempo em que muito mais coisas teria havido para viver além da obsessão da sua dúvida. Teria sido, desse ponto de vista, um tempo perdido. De seguida, pensou se iria conseguir chegar ao fim do curso também de uma forma obsessiva. No dia da graduação, olhou para trás e percebeu o enorme tempo que tinha perdido com a sua dúvida obsessiva. Quanta coisa não teria havido para desfrutar para além daquela sua dúvida obsessivamente vivida e que lhe não deixava pensar em mais nada nem olhar à sua volta? Foi a altura em que começou a pensar se iria ter um emprego estável. Quando uns anos depois arranjou um, pensou o que teria andado a fazer durante todos aqueles anos, sempre preocupado com a sua nova incerteza. Afinal tinha chegado a sua ocupação garantida, mas ele tinha perdido imensas experiências para sentir sem angústias e tinha-se, afinal, deixado envolver por mais uma preocupação obsessiva. E agora, quando lhe apareceria uma doença, que acabaria por o matar? No dia em que morreu, já não teve oportunidade de pensar mais nas suas obsessões e nas perdas que tinha tido ao longo da sua vida por ter andado sempre com dúvidas sobre o seu futuro. Já era tarde para saber que a vida está no que acontece e não no que poderá acontecer. Como fora possível que durante toda a fase de crescimento, de educação e trabalho nunca tivesse percebido essa coisa tão simples e tenha passado pela vida sempre a olhar para a frente e sem a ver para a ter? Foi traído, o distraído.
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