Ir ao outro lado é começar por ter uma «colega» que protesta porque nunca mais a chamam nem lhe ligam para a vizinha (mesmo sem ela saber o telefone) e ver a diligência da assistente que ao fim de algum tempo lá lhe conseguiu contactar a irmã.
Ir ao outro lado é ser atendido no Balcão e depois de uns «exames» ouvir o colega dizer-lhe, tudo bem pode ir para casa tomar estes comprimidos (mesmo com o coração em excesso de velocidade a mais de 150). Logo a seguir (ainda há vantagens em estar nesta profissão) vem uma colega especialista que muda os planos, altera a medicação e me põe em observação .
Ir ao outro lado é ficar a olhar o gotejo da droga salvadora e tentar espreitar o seu efeito, já desconfiado do êxito pelas experiências anteriores. Enquanto as gotas caem, no grande salão branco, as conversas ocupam enfermeiros felizmente em dia de pouco trabalho. Comenta-se o corte do cabelo, as nuances que matizam o cabelo ruivo que encolheu depois do frisado e recorda-se o casório recente com marido atirado para a piscina e as fotos do corte do bolo já com ele em calças de ganga, t-shirt e havaianas e mais uns pormenores do que se (não) seguiu, mas que importa ele afinalaté nem é moço de bebedeiras, mas naquele dia (logo naquela noite) ficou em estado de disfunção. Até me pareceu que o que mais se lamentava era não ter a fotografia que queria mais tarde recordar, que aquilo de fatiar o bolo sem fato não era muito próprio.
Ir ao outro lado é, depois do falhanço das gotas, subir de nível até uma enfermaria, onde estão estacionados mais cinco «colegas», na média dos 80 anos e sentir, a par da simpatia do trato dos profissionais, o condicionamento das regras. Atado aos fios que registam o ritmo, nada de sair da cama nem para ir à casa de banho. Leio o Expresso e espreito o monitor que não desiste. Dão-me mais umas horas e comida (ao fim de quase meio dia até aquilo se come!). E mais conversas, para animar o princípio de noite, comentando a falta de futuro de alguns dos «colegas» que para ali estão, sem darem conta(será que não dão mesmo?) do espaço nem do tempo, esvaziando os edemas à custa do lasix e a «festa» do anúncio da gravidez já de 4 meses da enfermeira, e eu a pensar que estavas só mais gorda, rapariga.
Ir ao outro lado é chegar de manhã e ouvir a colega, acabada de levantar depois de uma noite santa, sentenciar, não deu, vai dormir um pouco e quando acordar estará tudo resolvido. Ok, pensei vamos lá a isso, que ainda quero ir hoje dar um mergulho. Hora e meia depois, estava regressado, espreitei o monitor e o ritmo era normal. Na pressa do regresso, um levantar mais rápido, fez que mal chegasse ao fim do corredor, os suores voltassem e depois de sentir o vento da correria feita numa cadeira, já só me lembro de ter acordado de pés no ar e cabeça para baixo, com muitas caras ansiosas lá em cima e de novo a confusão dos fios e aos poucos as notícias tranquilizadoras. Ritmo sinusal.
Ir ao outro lado, é continuar de pressão arterial baixa depois de quase 24 horas de cama e drogas, continuar com sensação de desfalecimento de cada vez que me levantava e sentir que tudo se poderia resolver com uma deslocação para obter um doce alívio. Finalmente, deixaram-me ir ao WC proibido pelos regulamentos e voltei novo.
Ir ao outro lado, foi perceber que além da técnica exemplar dos comportamentos, o mal-estar não está descrito nos livros de medicina nem nos cadernos de procedimentos. Há mais realidade para além disso.
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