A ARTE DA MENTIRA
Nestas coisas muitas vezes as certezas são antes desejos e a realidade é mais incerta do que parece ser. Fui feito em tempos maus e, adolescente, apreciava os que retratavam esses tempos e outros, possivelmente ainda piores, mais antigos. Percebe-se que os meus heróis de então fossem o Soeiro Pereira Gomes, o Alves Redol, o Aquilino e até o Vergílio Ferreira, mais até do que o Eça e nunca o Camilo ou o Júlio Dinis, que denunciavam o país feio em que eu vivia.
Na ânsia de os ler, escaparam-me romances onde houvesse mais sonho e beleza. Arranjei aliados para o combate à custa da ausência de argumentos que fizessem sonhar e amolecessem a vida de quem os lê. Endureci.
Hoje, numa visita ao Museu do neo-realismo em Vila Franca, fui assaltado pela ideia de se não seria esta arte um pouco reacionária, se não terá a arte antes o papel de fazer sonhar, mesmo que o sonhado não passe disso e seja uma espécie de antidepressivo que faça tolerar a realidade sem a mudar. A realidade está à vista, a sua representação é um documento histórico, a fotografia de um tempo e, ainda que doa, alerta e não anestesia quem a vê. Há instantes em que a dor é melhor do que o sono, reacionário é o que não desperta.
Hoje, perante algumas adversidades, os jovens não querem que elas lhes sejam mostradas, preferem as visões dos sonhos e também não precisam de aliados para o combate, porque já têm as armas todas ao alcance de um click e o inimigo não é brutal como noutros tempos. Amolecidos de mimos, vitimizam-se com o mundo que lhes prepararam, muitas vezes considerando-se que estão por cá para serem um luxo dos pais e ficam à espera que aconteça em vez de fazerem acontecer. Desde pequenos ostracizaram a leitura e, maiores, consideram inúteis a história e a filosofia, isto é, não sabem de onde vêm nem adquiriram os instrumentos para pensar. A geografia, informa-os de uns sítios onde poderão ir passear um dia. Escolarizados, aprenderam a falar inglês para poderem entender os donos e a fazer segundo as suas normas. São a geração mais bem preparada para servir o sistema, onde criarão valor para os donos. Estão sozinhos, mergulhados nos sonhos dos ecrãs, falta-lhes a energia e aguardam que alguém lhes sirva o mundo dos seus sonhos. Idolatram a barulheira do rock e a gritaria à sua volta, adoram quem grita mais alto e culpabilizam sem piedade os que lhes deram o mundo em que estão. Toda a ruindade do mundo é culpa da peste grisalha, mas, finalmente, chegou o pastor que os vem salvar, cheio de soluções para todos os seus problemas. Nem percebem que o rebanho está a ser levado no caminho do matadouro. (Resta a esperança que, no dia decisivo, fiquem a dormir.)
Estamos no tempo da arte da mentira, mas, reacionário, permanecerei no tempo da realidade.