sexta-feira, junho 30, 2006

A comunicação

«Já se não encontra gente dessa hoje em dia». Ouvi no corredor quando chegava ao hospital. É curiosa esta afirmação que traduz a percepção de que, como espécie, estaremos a piorar. Gente dessa era gente com preocupações com os outros, que tinha como valor negativo o individualismo, que achava a hipervalorização pessoal algo de quase criticável. Gente dessa, era afinal gente boa que dava jeito ter à mão. Gente generosa muitas vezes, porque treinada a pensar e a encontrar respostas.
Lembrei-me então de como na época da facilidade de comunicação, é difícil ter gente à mão. Por exemplo, ligamos para um serviço e começam por dar-nos música. Depois, vem a gravação dizer-nos que a chamada está em espera. Segue-se outra gravação (ao vivo), que nos «agradece o tempo que esperámos» e que, após a nossa pergunta, logo nos pede para esperarmos mais um pouco. Momentos depois, retoma a conversa com o novo agradecimento por termos estado à espera. Mas é como se nada estivesse a dizer-nos. Realmente, a jovem não nos está a agradecer nada, está a debitar uma mensagem que lhe gravaram na cabeça. Depois de consultar o algoritmo, sai a resposta. Se não nos convencemos, teremos nova pausa e novo agradecimento gravado e ao vivo minutos depois. E tudo sempre de acordo com o algoritmo, sem margem para pensar, para reflectir, para ter opinião. Afinal não falamos, não comunicamos, do outro lado está apenas um folheador de algoritmos elaborados por entidades ocultas que esperaram ter todas as respostas para as nossas perguntas. Dantes, alguém de quem não sabíamos o nome (agora dizem-nos como se chamam, mas também ficamos sem lhe sabermos os nomes) dizia-nos o que pensava, o que sabia sobre o que lhe perguntávamos. Agora só ficamos com as meias respostas de seres ocultos. Quem nos responde já se habituou a não ter opiniões nem conhecimentos, apenas folheia algoritmos. Desiludidos com isto, destreinamo-nos de questionar, porque o mais certo é não obtermos respostas. Tempo perdido.

quarta-feira, junho 21, 2006

De Cape Cod

Afinal ainda não foi desta que o blog morreu. Excesso (nunca é!) de férias tem impedido vir aqui deixar algumas notas.
Acontece que hoje cheguei onde a geografia deste país faz músculo com o braço esquerdo e sobrou um pouco de tempo no meio desta azáfama.
A viagem desde Bóston faz-se, em ritmo americano sem conflitos com a polícia, em cerca de 3 horas até Hyannis, quase no meio do antebraço de Cape Cod. A auto-estrada é um rasgão pelo meio de uma floresta. A península tem o charme habitual destes locais de ir no Verão, com as pequenas casas de madeira, frequentemente enfeitadas pela bandeira americana como agora está na moda. Optámos por vir pela 6A, mais perto da costa, em vez de usar a auto-estrada que corre a meio do braço.
De um lado e do outro da estrada ou a vegetação e os relvados das casas numa sucessão de inns, B&Bs e restaurantes onde domina o marisco como oferta. Parece que é para isso que aqui se vem. E nós fizemos o que tem de se fazer, no Marathon seafood em Dennis, um tasco de beira de estrada (como nos filmes) onde os lombos de lagosta e a clam chowder cumpriu acompanhada da Budweiser clássica.
Durante a manhã ainda se tinha andado pelo Quincy Market e percorrido a Beacon Hill St em Bóston na busca do Cheers que agora, afinal, se transplantou para Quincy Market, ficando na Beacon nº 84, o Bull and Finch, onde a ligação ao bar da série se limita à bandeira e à loja de franchising do Cheers. De volta passou-se pelo Public Garden e pelo Bóston Common antes de chegar à agência de aluguer do carro em que viajámos. Como já nos habituámos, não se pode parar a olhar para um mapa que logo vem um simpático americano safar-nos da desorientação. Mas sobre América e americanos, tentarei voltar nos próximos dias, recordando aos poucos o que tem sido esta viagem desde o dia 10 de Junho.

quinta-feira, junho 08, 2006

Obviamente

Naquele mês a conta da electricidade foi quase dez vezes o habitual. Como se a luz tivesse estado apagada todo o ano e, subitamente, todas as lâmpadas tivessem ficado acesas o mês todo. Expliquei-lhe que, agora, já só vinham verificar os consumos uma vez por ano, que não era necessário ter funcionários a registar as medições todos os meses. Faziam uns cálculos e uma vez ao ano acertavam contas. Não percebeu, logo agora que há tanta gente desempregada! disparou. Faz realmente todo o sentido a dúvida. Numa Economia para as pessoas, sem a preocupação de economizar nas pessoas.

segunda-feira, junho 05, 2006

Em dois dias seguidos

1. Chega o café, acompanhado do respectivo pacote de açúcar. A cliente pergunta, tem adoçante? A resposta, vem seca: tenho! Segue-se uma pausa e alguma estupefação da cliente, após o que vem a pergunta inesperada, quer que lhe traga? Como se fosse admissível que a cliente apenas tivesse feito a pergunta para saber se havia adoçante naquele restaurante... simples curiosidade, sei lá.
2. Telefono para o secretário administrativo e pergunto-lhe o número de telefone da senhora Administradora e obtenho como resposta «parece-me que é o 1111». Parece-lhe ou tem a certeza, arrisco. Ah, quer telefonar-lhe? Claro, seria por andar a coleccionar números de telefone, que lhe pedia a informação? Depois de verificado, não era... Moral: nem tudo o que parece, é.
Mas que se passa? Será que certas perguntas não contêm uma intenção manifesta quando são formuladas? Será só para manter conversa? Às vezes penso que isto pode ser uma manifestação de uma doença a descrever brevemente, caracterizada por um não me chateis que tenho mais que fazer. Só que ninguém percebe muito bem o que seja.

sábado, junho 03, 2006

Pipi

É cada vez mais um país pipi ou polifónico. Em todo o lado irrompe o Toreador ou o Bolero. Nunca se ouviu tanta música clássica. Diz a notícia que há mais de 11 milhões de utilizadores e que a taxa de penetração se aproxima dos 110%. Não há dúvida: bem penetrados, geralmente mal pagos e com muita vibração... Lá vamos, telefonando e rindo, levados, levados, sim. É que não há tempo a perder!

quinta-feira, junho 01, 2006

Segurança anti-social

Tinha um ar aliviado nas palavras, mas alguma tristeza nos olhos. Tristeza ou remorso, não percebi bem. Anunciava-me, talvez, pela décima vez que tinha entregue a papelada para se reformar usando o sentido de oportunidade que é acessível aos que nasceram até ao ano certo. Fazendo-o agora, conseguia ter cerca de 2500 euros, amanhã ninguém sabe quanto seria, por isso vamos antes que se faça tarde. O incómodo existia, pois foi-lhe necessário dizer que não era propriamente uma pensão milionária. Deixou-me a meditar nestas coisas da segurança social e na facilidade com que se usam palavras simpáticas para designar exactamente o contrário. Segurança social, imaginava eu, diria respeito a manter os cidadãos de uma comunidade preservados do meio hostil, isto é, dar-lhes uma casa, cuidados de saúde, alimentação e por aí adiante. Acho que esta realidade não rima bem com pensões que ultrapassam, como tem sido descrito nos jornais, mais de 10 vezes o ordenado mínimo. Traduzo, há uns tipos que têm de trabalhar quase durante um ano para obter o que outros conseguem, num mês, a descansar, (os quais tinham passado a vida a descontar mensalmente, enquanto trabalharam, aproximadamente um mês de vencimento dos outros). Ou seja, este comportamento anti-social já vem de longe. Porque muitas vezes, já a força se lhes foi e mais não conseguem que ir passando o tempo de forma a não desarranjar de vez o coração, os pulmões e outras peças, mais não conseguirão do que acumular capital sem proveito próprio. Assim, a segurança social destes milionários das reformas nem sequer é a deles, é a dos filhos e sobrinhos, os quais, em grande medida, já dela não careciam também, por terem tido possibilidades de formação e ocupação que os isentaram do risco social. Por ironia, poderão mesmo estar nos lugares onde se decide a segurança social. Francamente, isto parece-me tudo muito pouco social e mais, não me garante segurança nenhuma, diria mesmo que terá de acabar em barricada um destes dias.